Categoria: Volume I * nº. 3 * Novembro de 2021

Edição de Novembro de 2021 do Jornal América Profunda

  • O touro dourado de São Paulo: a estética é importante, porra!

    O touro dourado de São Paulo: a estética é importante, porra!

    Por: Vinícius Carvalho

    Elite é cafona, ponto. Elite é cafona na Europa, na Oceania, na Ásia, na África, nas Américas, na Antártida e suponho que até no Inferno deve ser brega. Nada mais horroroso do que aqueles cabelos rococós da França e Inglaterra de outrora; nada mais horroroso e esdrúxulo que Mônaco e Ibiza. Se eu começar a falar de Estados Unidos então, fudeu.

    Eis aí nossa miséria, eis a nossa desgraça de país colonizado. Me permitam falar uma vez sem os rigores que a formação de história me exigem, esse texto será um papo de botequim com alguma fundamentação.

    Os coroas costumavam falar que o Brasil jamais deixou de ser colônia. Trocamos Portugal por Inglaterra e depois Estados Unidos. Nossas elites republicanas locais se inspiravam, primeiro, nas elites francesas, no falar, no agir, na arquitetura e depois nos EUA.

    A questão é que elite nasceu para ser algo feio porque operam no exagero e na opulência. E é aí que estética opera na esfera política, e não falo isso de brincadeira, Benjamin, o Walter, por exemplo, alcunhou o nazismo e o fascismo de “esteticização da política”.

    Não é por menos que todo o processo de radicalização à extrema-direita que se deu no Brasil foi acompanhada de um brutal aparato estético. Uma cultura de exageros nos símbolos, cores nacionais e tendo a tosquice imagética e cultural (na arte, na música, na entonação de voz, nos programas de TV, na religiosidade, humor, etc) como método de comunicação popularesca.

    Essa simbiose entre a estética do horrível, do péssimo, do feio, do deplorável, do canceroso, operou como suporte sentimental e alicerce de sustentação para a luta de classes às avessas que o neoliberalismo operou no Brasil.

    Sim, uma sociedade hiper-consumista, com trabalhadores jovens ganhando pouco mais de um salário mínimo se endividando para comprar combos de vodka com energético que custavam metade de seus salários, nas quintanejas da vida; meninos da classe C sonhando com camaros amarelos e playboys querendo virar empreendedores e exploradores do próximo, operaram um arcabouço de significados que ajudou a desaguar no bolsonarismo.

    Este lamaçal atinge níveis insuportáveis na inauguração do horroroso Touro de Ouro, no Centro de São Paulo, representando a “pujança” da Bolsa de Valores, e vem ao mundo no mesmo dia em que é noticiado que apenas 21% das crianças brasileiras conseguem fazer três refeições diárias.

    As bases estéticas são fundamentais para a construção de uma sociedade próspera do zero e não é exagero. Mas então, afinal, qual é o oposto dessa estética do absurdo? O contrário do exagero é a igualdade. Diferente do que querem nos convencer os capitalistas, não é a acumulação que enriquece uma nação, é a equidade e a confiabilidade.

    Nossa classe-média quer se inspirar na elite, e esta, por sinal, quer se inspirar naquilo que eles acham que representam a elite de outros países. Porém, muitas das vezes, essas nações da matriz capitalista querem vender para a própria população uma ideia de que são “países de classe média”, ou seja, a romantização de um padrão de vida de vicissitudes urbanas, cosmopolitas e relativamente modestas, é também dominação econômica.

    Certa vez tentei me debruçar sobre o que era o tal “minimalismo escandinavo”, porque aquilo estava sendo tão falado seja na moda, seja na arquitetura, e, ao pesquisar vi que o tema era mais profundo e abrangente do que aparentava e muito diferente dos usos que o mercado brasileiro estava fazendo do termo. Por aqui, tentaram transformar minimalismo em luxo: o oposto da ideia original, onde minimalismo simbolizava igualdade, processo histórico de superação da pobreza, beleza, simplicidade e design de ponta acessível a todos.

    Os países escandinavos continentais – Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia (este último “fino-escandinavo”, por ter uma origem étnica e linguística diferente dos demais) – foram nações muito pobres na primeira metade do século XX. De raiz histórica igualitária, adentraram o século fortemente influenciados por partidos de esquerda e organizações sindicais. Apesar a economia deplorável, já debatiam com certa vanguarda um sistema penal mais garantista e relativa liberdade sexual, comportamental bem como viviam preceitos de igualdade de gênero já avançados para o período no ocidente.

    Em 1933, Aksel Sandemose, um autor de nacionalidade norueguesa e dinamarquesa, escreveu um romance chamado “En flyktning krysser sitt spor”, que em tradução pobre significa algo como “Um refugiado cruza o caminho”. Nesta obra que metaforiza a localidade onde ele nasceu e que seria um símbolo de toda aquela sociedade, Sandemose, passa para o papel um sentimento socialmente reproduzido no cotidiano, as “Leis de Jante”.

    Tais leis não eram leis reais, e sim uma espécie de comportamento, onde o êxito de uma pessoa acima das demais era visto como reprovável. Numa sociedade onde todos se conhecem e praticamente inexiste o anonimato requer compostura e moderação (todas as contas bancárias e cadastros de pessoa física eram abertos para a comunidade até bem pouco tempo nestes países). Uma sociedade que respeitava a individualidade, as liberdades e fetiches de cada um, porém sem maiores segredos e coisas a esconder.

    Sandemose numerou em 10 as Leis de Jante, onde “nós” significa a sociedade ou a comunidade e formam o chamado “Escudo de Jante dos povos escandinavos”, são elas:

    1. Você não pensará que é especial.
    2. Você não pensará que está no mesmo patamar que nós.
    3. Você não pensará que é mais inteligente que nós.
    4. Você não imaginará que é melhor que nós.
    5. Você não pensará que sabe mais que nós.
    6. Você não pensará que é mais importante que nós.
    7. Você não pensará que é bom em alguma coisa.
    8. Você não rirá de nós.
    9. Você não pensará que nós nos importamos consigo.
    10. Você não pensará que pode nos ensinar alguma coisa.

    É ou não é o oposto do Touro de Ouro? Mas tudo bem, essa sociedade também tem lá suas chagas.

    No pós-guerra, afundados na pobreza, foi fácil nessas nações criar um consenso em torno de uma cultura cotidiana de que apenas seriam prósperos se fossem minimalistas e austeros nos costumes, onde a beleza fosse acessível e capilarizada para toda a sociedade.

    Daí casas modestas e parecidas, com móveis simples, poucas variações de cores e sobriedade arquitetônica; roupas lisas, básicas e, no geral, de coloração em peças únicas. Uma camisa amarela era apenas uma camisa amarela, uma calça jeans era apenas uma calça jeans. Roupas femininas que valorizavam não o corpo e as curvas de cada uma, mas que abrangesse e desse autoestima para os diferentes corpos de todas as mulheres.

    Da simplicidade, de móveis, decoração e vestimentas, a variação e excelência vieram na forma e na beleza dos cortes, designs e na organização dos espaços. O minimalismo por lá operou uma estética oposta à estética nazifascista por um lado, e oposta à hiper-consumista e aprofundadora do fossos sociais, do outro lado, como nos Estados Unidos.

    Essa estética de igualdade e sobriedade ajudou a formar uma classe-média paciente, conformada com as altas e progressivas cargas tributárias necessárias para a redistribuição de renda, a compartilhar serviços públicos e aprofundar o investimento em soberania tecnológica, fundos econômicos soberanos e soft power.

    No Brasil, o oposto assimétrico com as Leis de Jante, é a Lei de Gérson. Deem uma olhada no google.

    Enquanto Bolsonaro – o liberal anti-iluminista e representante-mor da Lei de Gérson – está ostentando em Dubai e seus asseclas cafonas, fodidos, imorais, feios, sarcásticos e violentos inauguram o ridículo novo símbolo do horror social, o Touro de Ouro, Lula – o nosso verdadeiro Homem de Jante – chamado de comunista pela direita brasileira, foi para a Europa fazer a lição de casa do capitalismo. Falou em Estado Nação, tecnologia, soberania nacional, ecologia, economia, desigualdade e retomada da confiabilidade.

    E quem não me deixa mentir é o maior filósofo do capitalismo:

    “A totalidade das pessoas comuns e dos agentes econômicos em particular supõem de forma equivocada que a riqueza de um Estado é medida pelos bens materiais, naturais e manufaturados, que possui. Nada poderia estar mais errado. A maior riqueza de uma nação é a confiança.” – Adam Smith, A Riqueza das Nações.

  • O lixão precisa de democracia radical

    O lixão precisa de democracia radical

    Por: Fernando Eurico Lopes Arruda Filho

    Foto: João Paulo Guimarães

    Do sitiamento à democracia radical e participativa: mecanismos de visibilidade para a comunidade do lixão de Pinheiro/MA

    Este artigo decorre de uma demarcação espacial condizente ao município de Pinheiro-MA, Brasil, local onde este pesquisador desenvolve a profissão de Defensor Público estadual. Aliando sua atividade profissional com a acadêmica, deparou-se com um grupo hipervulnerável, a comunidade de catadores/recicladores do lixão pinheirense, e partiu-se da ideia de como fazer esse agrupamento ser ouvido pelas instituições públicas e privadas.

    Este pesquisador foi ao “centro nervoso” do lixão e verificou, como seus próprios olhos, a total miséria humana. A degradação em todos os sentidos. Uma dignidade humana vilipendiada pelos açoites mais cruéis do descaso público. Feito um vídeo chocante com imagens impactantes em que este pesquisador aparece “inflamando” a comunidade a participar de uma audiência pública, colocou-se em pauta um problema em que a sociedade deixou invisível.

    A partir desse contexto, este pesquisador, como Defensor Público, lançou mão de um mecanismo legal de participação popular: a audiência pública. Com ampla divulgação popular e midiática, dramatizou-se e tematizou-se o problema, tornando-se agenda pública na cidade. O intuito inicial é a constituição de uma associação civil sem fins lucrativos dos catadores.

    A preocupação filosófica é como um ancoramento na filosofia de Jürgen Habermas e no pensamento de Boaventura de Souza Santos poderia ser o ponto de partida para sair-se de um sitiamento para a efetivação de políticas públicas em favor daquele grupo.

    A hipótese aventada por este pesquisador é que essa comunidade tem que se inserir no processo democrático discursivo na perspectiva do mundo da vida, o qual é formado pela esfera pública (instituições que promovem a socialização, integração social e reprodução cultural) e privada, através de um discurso pragmático-argumentativo na esfera pública como recurso para uma socionormatividade, com a finalidade de exigir uma série de políticas públicas.

    Levando em consideração o pensamento sociopolítico habermasiano, uma determinada comunidade social, como é o caso do lixão de Pinheiro-MA, pode utilizar argumentos pragmáticos e ético-políticos para fazer valer suas aspirações, dando ensejo à exigência de efetivação daquilo que já consta em regras jurídicas, tal como a Lei 12.305/2010 (Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos), assim como à criação de outras normas que acomodem suas pretensões.

    Para se alcançar a emancipação, ultrapassando o simples sitiamento, é que deve surgir uma prática comunicativa do entendimento linguístico com poder socionormativo. É nesse particular que a audiência pública tem o seu poder de congregação de participação popular.

    Habermas se expressa quanto à atitude comunicativa nestes termos[2]:

    Tudo o que é dito em atitude comunicativa acaba se referindo à verdade, à correção normativa e à sinceridade, pois, em toda situação em que se encontram os participantes da interação, são inevitáveis as referências ao mundo objetivo, formado pela totalidade das coisas e dos fatos, ao mundo social, formado pela totalidade das normas consideradas legítimas, e ao mundo subjetivo, formado pela totalidade das vivências pessoais, ao qual cada um tem um acesso privilegiado. Dadas essas três referências inevitáveis de cada ato de fala, ele pode ser questionado em relação seja à verdade para o mundo objetivo, seja à correção normativa para o mundo social, seja à sinceridade para o mundo subjetivo.

    As normas a serem alcançadas através de uma prática socionormativa tem, nessa moldura, um conceito amplo e abrangente. Pretende-se, inicialmente, na própria audiência pública, a constituição de uma associação civil sem fins lucrativos dos catadores em que será firmado o estatuto social. A norma, portanto, nesses moldes, toma um sentido lato. A regra legal a ser perseguida é de cunho particular com amparo no ordenamento jurídico. Ou seja, a constituição da associação civil é o alavancamento para a busca de políticas públicas e materialização de direitos.

    É com fundamento nessas premissas que nascem duas perguntas: como a partir do modelo comunicativo poder-se-ia sair de um sitiamento, ou de práticas somente defensivas, para a institucionalização democrática do poder político? Qual a potencialidade política do discurso de uma esfera pública comunicativa?

    Para combater o silenciamento, além da socionormatividade já ressaltada, Boaventura evoca a rebeldia das subjetividades retomando uma epistemologia do Sul superadora de uma matriz colonizadora, centrando-se na sociologia das ausências e da insurgência (sociologia das emergências e ecologia dos saberes) e na democracia de alta intensidade, a partir das quais se pode chegar à uma cultura política emancipatória.

    Conforme Boaventura, não se deve preocupar somente com a estrutura, com as condições objetivas, mas também com a ação, para que haja transformação social, criando-se as subjetividades rebeldes pela vontade. Tem-se que reinventar as ciências sociais para se criar uma racionalidade que possa atacar uma razão indolente. Boaventura divide essa razão indolente em duas formas: a metonímica e proléptica.

    Quanto à primeira, Boaventura[3] assim se expressa:

    E essa é uma racionalidade que facilmente toma a parte pelo todo, porque tem um conceito de totalidade feito de partes homogêneas, e nada do que fica fora dessa totalidade interessa. Então, tem um conceito restrito de totalidade construído por partes homogêneas. Esse modo da razão indolente, que chamo razão metonímica, faz algo que, a meu ver, é um dos dois aspectos do desperdício da experiência: contrai, diminui, subtrai o presente. (…) Então esse conceito de razão metonímica contrai o presente porque deixa de fora muita realidade, muita experiência, e, ao deixá-las de fora, ao torná-las invisíveis, desperdiça a experiência.

    No que tange à segunda razão, Boaventura[4] assim acentua:

    Nossa razão ocidental é muito proléptica, no sentido de que já sabemos qual é o futuro: o progresso, o desenvolvimento do que temos. É mais crescimento econômico, é um tempo ideal linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa: o futuro é infinito.

    Pela sociologia das ausências, Boaventura pretende a superação de uma monocultura do saber científico pautada num tempo linear em que se naturaliza as diferenças. O conhecimento dominante exalta o universalismo e a globalização, além de dar uma importância significativa à produtividade mercantil do trabalho e da natureza. Tem-se que expandir o presente, trazendo à tona as experiências invisíveis em ataque às monoculturas.

    Na sociologia da insurgência, em vez do tempo linear, as temporalidades são destacadas, reconhecendo-se os saberes e suas produtividades em substituição às monoculturas (ecologia dos saberes). Além disso, critica a razão proléptica, pois deve-se saber sobre aquilo que está nascendo para o futuro, não antecipando o futuro (sociologia das emergências).

    Assim, o que propõe Boaventura é expandir o presente e contrair o futuro, ultrapassando as duas razões indolentes, mostrando as pluralidades presentes e aquilo que está nascendo.

    A democracia de alta intensidade reclama uma radicalização das subjetividades rebeldes, utilizando-se dos instrumentos postos: legalidade, democracia e direitos humanos como mecanismos contra-hegemônicos. Age com a paciência infinita da utopia.

    Tanto na perspectiva de Habermas quanto de Boaventura, a racionalidade atual do mundo ocidental capitalista abraça a ideia de um entrelaçamento do mercado econômico com o poder burocrático estatal. O aspecto visível disso nas democracias que se desenvolveram a partir do colonialismo é o modelo neoliberal de democracia em que o Estado é um problema. Naquela tensão do contrato social entre regulação e emancipação, o Estado passa a não ter mais o monopólio da regulação social, advindo daí um constitucionalismo global dos grupos multinacionais, gerando uma democracia de baixa intensidade.

    As democracias ocidentais, além de neoliberais, são participativas. No entanto, apesar de o cidadão autorizar o mandatário a exercer o poder, o representante não presta contas do exercício do mandato, de modo que o cidadão não se sente representado tampouco há sua participação no poder. Até porque, para haver participação, o cidadão deve ter uma sobrevivência garantida, um mínimo de liberdade e acesso à informação. O capitalismo não lhe proporciona isso.

    O diagnóstico de Boaventura aponta para um fascismo como regime social. Relata também as desigualdades sociais invisíveis e neutralizadas, assim como a eliminação de todos os direitos dos grupos minoritários. Percebe-se que esse diagnóstico se alinha com o de Habermas, o qual aponta a dominação da razão instrumental do mercado e poder estatal sobre o mundo da vida.

    Nesse passo, como já dito, a resolução seria a expansão do presente e a contração do futuro. No presente muita experiência fica de fora, de sorte que se traria as realidades ausentes para o mundo da vida, fazendo emergir os saberes alternativos. Utilizar-se-ia os instrumentos hegemônicos (legalidade, democracia e direitos humanos) para a construção de uma democracia de alta intensidade através de um manejo contra-hegemônico daqueles mesmos mecanismos.

    Nesse ponto ganha realce a audiência pública, a qual é um instrumento legal, democrático e de direitos humanos. Faz-se uma releitura desse instrumento hegemônico para utilizá-lo como mecanismo de pauta pública de um processo democrático-discursivo. Na sessão pública é viabilizada uma visibilidade com tons de rebeldia.

    Por outro lado, para que tudo isso ocorra, necessário um procedimento de tradução entre os vários saberes. Uma inteligibilidade recíproca no interior das pluralidades. Para a existência de uma ecologia dos saberes, deve haver uma despolarização das pluralidades, na visão de Boaventura. Essa inteligibilidade ocorrerá por meio da argumentação.

    Ainda no entendimento de Boaventura, a emancipação social somente existirá com a radicalização do que existe. Uma luta direta, ilegal e pacífica. Ou seja, uma mescla de legalidade e ilegalidade. Habermas fala, nesse tom, em desobediência civil. Assim é que se constituirá a democracia de alta intensidade. Uma intensidade democrática é o meio mais eficiente para a transformação social.

    É nessa esteira que se deve pensar nos poderes de influência e sociointegrativo da ação comunicativa. Para que tal fato se constitua, os componentes sociais e políticos não podem agir simplesmente em forma de sitiamento, em somente se defender. Esse déficit de institucionalização é combatido pelo potencial político da ação comunicativa. A emancipação advinda da ação comunicativa necessita da ampliação dos domínios sociais e de uma abertura de canais comunicativos no sistema político-administrativo.

    A ultrapassagem do sitiamento dar-se-á pelo poder da normatividade em conjunto com uma democracia radical e de alta intensidade, evocando-se a sociologia das ausências e da insurgência, assim como a potencialidade política do discurso de uma esfera pública comunicativa, de modo que a arena pública de discussão é o meio mais promissor de transformação social. A participação popular numa audiência pública traz à tona um problema invisível. Propõe-se uma pragmática argumentativa para gerar a norma através do consenso.

    [2] NOBRE, Marcos (org.). Curso livre de Teoria Crítica. Campinas, SP: Papirus, 2008, p. 169.

    [3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Tradução de Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007. 126p, p. 25-26.

    [4] SANTOS, op. cit., p. 26

  • Mansplaining: Não sabe o que é? Pergunte em voz alta, com certeza um homem te explicará (mesmo que ele não saiba).

    Mansplaining: Não sabe o que é? Pergunte em voz alta, com certeza um homem te explicará (mesmo que ele não saiba).

    Por: Ana Flávia Bassetti

     Há bastante tempo adquiri o hábito de pedir informações na rua só para mulheres. Por quê? Porque nunca, nesta situação, nenhum homem me disse que não sabia onde ficava a Rua X ou qual ônibus pegar para chegar até o lugar Y. Resultado: muitas vezes acabava mais perdida do que antes por causa da informação errada.Mas, quando falamos de mansplaining – do inglês: man = homem, e splaining = a forma informal do verbo explain, que significa explicar – estamos falando daquela velha cena em que um homem explica algo para uma mulher que ela evidentemente sabe. Ou, quando ele explica algo de forma muito didática, como se ela não fosse capaz de compreender. Ou ainda, quando começa a explicar alguma coisa a uma mulher assumindo, de antemão, que ela não sabe nada sobre aquilo. Tem homem que quer explicar feminismo para mulher, AVC pra médica, teorema de Pitágoras para engenheira, corte à Julienne para uma chef de cozinha… Gente, é sério. Já soube de homem que discutiu com mulher sobre a localização do clitóris. Calculem!

    Eu adotei uma cachorra recentemente e, como tenho falado muito sobre ela e da minha jornada na educação canina, essa prática me saltou aos olhos. Um rapaz, com o qual estava tendo um “trelelê” e que acompanhou meu encontro com a Madalena desde o começo, quis explicar como eu deveria lidar de forma prática com as minhas emoções. Aconteceu que, no quinto dia da Madá aqui em casa, me deu um medo tipo “meu deus, serão mais de quinze anos de completo comprometimento com ela: Será que dou conta? Será que vou me arrepender? Será que fiz a coisa certa? Dividi com ele o drama, afinal, parecia ser um cara aberto para conversas um pouco mais profundas. Foi quando ele começou a me aconselhar sobre como eu tinha que amá-la e deixá-la me amar, que eu deveria olhar as coisas boas, e não as ruins. Oras, não se tratava disso. Eu sei que vou amá-la, e que ela, por óbvio (e pela boa ração que eu compro), me amará.  A questão era dividir uma insegurança com um amigo. Eu não estava pedindo uma solução, ainda mais óbvia como a que estava me dando.

    Outro dia, o namorado de uma amiga veio aqui em casa. Era a primeira vez que nos víamos e, em dois minutos de conversa, ele começou a me explicar porque ela não fazia xixi no lugar certo, o que eu estava fazendo de errado e o que era o certo a se fazer, mesmo depois de saber que eu estava sendo acompanhada por um adestrador. Detalhe: ele comprou um cachorro recentemente que já foi doado como um móvel que não serve mais, mas essa discussão fica para outro dia.

    Uma amiga me contou da última que ela passou. Foi até o banco resgatar a previdência privada para fazer a reforma do apartamento recém comprado. O rapaz que a atendeu pediu que ela pensasse melhor sobre o caso pois, ao fazer a retirada naquele momento, teria uma desvantagem financeira. Ela disse estar ciente disso e que ainda assim gostaria de retirar o dinheiro. Ele, não contente, sugeriu que antes de tomar a decisão ela fosse para casa e conversasse com o marido. Ela é solteira. Ela é solteira e inteligente e independente. 

    São coisas mais ou menos sutis que acontecem todos os dias no ambiente de trabalho, no meio acadêmico, no almoço de família, na mesa do bar, nos relacionamentos amorosos. Falando nisso, tenho amigas que depois de casadas mudaram radicalmente seus posicionamentos políticos, seguindo as convicções dos maridos. Eu nunca vi nem ouvi falar sobre algum caso em que o contrário tenha acontecido. Vocês já?

    Ah, mas então os homens não podem mais expor suas opiniões? São tempos em que esta arapuca de “expor a opinião” está armada em todos os lugares, não é? E eu entendo que para alguns seja difícil de entender. Afinal, os homens em sua maioria foram ensinados que devem ensinar as mulheres. Foram ensinados que devem saber tudo, e muitos acabam achando que sabem mesmo. Foram ensinados a não demonstrar fraquezas, a dar conta. E nós, mulheres, também acabamos muitas vezes procurando uma opinião masculina, pois ela nos foi vendida desde muito cedo como sinônimo de segurança. Mas você, homem, pode, antes de explicar algo a uma mulher, verificar se ela pediu sua opinião. Você pode abrir espaço para perceber que mulheres são intelectualmente capazes e que podem e vão saber mais sobre algumas coisas do que você. Você pode tentar baixar esta “ansiedade explicativa” e exercitar essa coisa linda que é a escuta. 

    Há muito caminho ainda. E a caminhada é, para nós e para eles, a passos de formiguinha. Quanto tempo vai levar? Qual o tamanho do passo de uma formiga? Quem aí sabe?

    Imagem: Jason Adam Katzenstein. 

  • Crônicas de um cético observador marxista

    Por: Andre Luis Jacomin

    Crônica de novembro 

    A descrição da identidade do cronista apresenta em si uma contradição. O marxismo nos compele à ação humana para mudar a realidade. Por outro lado, a atitude cética do observador conduz à inação ou pura contemplação.

    ***

    Diz-se que o pensador René Descartes pariu a modernidade por meio da dúvida. Grosseiramente, o principal argumento da primeira das suas seis “Meditações Metafísicas” é de que a dúvida acerca da realidade do real, incluindo a própria existência do sujeito que a observa, funda a possibilidade de um pensamento real e verdadeiro, por meio do “Eu”, que pensa.

    Claro. A partir da fundação das bases do pensamento moderno, será possível a construção de um projeto iluminista que tirará a sociedade das trevas e nos libertará dos grilhões do obscurantismo.

    Este sujeito ensimesmado, europeu, esclarecido e libertador, cruzou fronteira e impôs seu projeto de pensamento para o além-mar, de maneira hegemônica até os dias de hoje, libertando-nos do primitivismo.

    ***

    Enrique Dussel, refletindo sobre o pensamento hegemônico a nós imposto pela Modernidade “Europeia”, entende que nós, os dominados, somos o avesso do seu projeto de emancipação. Somos “o outro”, que se depara com aquele velho sujeito ensimesmado cartesiano e grita: “eu também existo, seu sujeitinho”.

    O filósofo argentino conclui que devemos superar esse pensamento europeu. Não nos entregando a radicalismos de extrema direita antimodernidade, contra vacina ou que prescrevem chã de hortelã para curar doença viral. Também afirma que não devemos cair num niilismo cético que não vê mais saída racional para o problema. Dussel nos exorta a transcender essa modernidade, fazendo inserir nesse projeto a nossa alteridade, o nosso grito de libertação. Talvez assim possamos compreender a profundida da contradição apresentada pelo autor no final do seu texto que serviu de inspiração para o cronista1:

    Aos 500 anos do começo da Europa Moderna, lemos no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 1992 (UNDP, 1992: 35)20 das Nações Unidas que os 20% mais ricos da Humanidade (principalmente a Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Japão) consome 82% dos bens da Terra, enquanto os 60% mais pobres (a “periferia” histórica do “Sistema-Mundial”) consome 5,8% desses bens. Uma concentração jamais observada na história da humanidade! Uma injustiça estrutural nunca imaginada em escala mundial! E não é ela fruto da Modernidade ou do Sistema mundial que a Europa ocidental criou?”

    1DUSSEL, Enrique. “Europa, modernidade e eurocentrismo”. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

     

  • Lula e a Regulação da Mídia

    Lula e a Regulação da Mídia

    Por: Diogo da Silva

    Lula jamais foi ou será o queridinho da mídia brasileira. Pelo contrário, sempre em seu nome foram imputados exatamente o contrário do que mostrou em seus mandatos como presidente, marcados pela conciliação como pavimentação do caminho da redistribuição de renda e da construção da mínima dignidade para a população mais carente do país.

    Faltando menos de um ano para as eleições, inúmeras pesquisas apontam que a candidatura de Lula é a mais robusta para o pleito de 2022. É este o gatilho para a campanha de difamação já em curso nos grandes veículos de comunicação do país, o que, convenhamos, não é nenhuma novidade. De posse desse conhecimento e da análise do tabuleiro, parece se justificar a estratégia adotada até aqui pelo líder do Partido dos Trabalhadores, que aposta em uma visibilidade calculada para não dar munição para a imprensa controlada pelas elites e pelo mercado financeiro – que a propósito, fazem fortuna com a desgraça do povo brasileiro.

    Considerando suas mais recentes declarações, Lula demonstra ter consciência de que uma de suas grandes faltas foi não ter encarado a regulamentação da mídia como um de seus objetivos principais em seus dois mandatos – o que já foi feito na Argentina (2009), Venezuela (2005), Uruguai (2015) e é aplicado em outros países como EUA e Reino Unido. Aqui no Brasil, porém, a regulação dos meios parece ser um tabu comparável a descriminalização da maconha ou do aborto, visto que, quando pautada, a questão é resumida em uma única palavra: censura.

    Bastou Lula falar em regulação da mídia para que os jornais e veículos de grande circulação ativassem o botão do pânico, divulgando em suas manchetes que o Partido dos Trabalhadores, novamente no poder, trabalhará pela “censura da imprensa” e pelo “controle social”. Essa é a maneira que a imprensa brasileira encontra para sufocar o debate, para promover danos políticos sensíveis ao ponto de um provável recuo. E o pior é que funciona.

    De acordo com pesquisa realizada de forma conjunta entre a ONG brasileira Intervozes e a Repórteres Sem Fronteiras lançada em 2017, 70% da audiência nacional no segmento televisivo é comandada por apenas quatro grandes redes, que também detêm o comando das principais rádios, jornais e sites de notícias do país. Ainda segundo o levantamento, 26 grupos econômicos detêm os 50 meios de comunicação com maior audiência no país, sendo que 73% desses grupos estão localizados em São Paulo e 80% na região sudeste e sul do Brasil.

    Ainda mais graves são as ligações entre políticos – incluindo seus familiares – e os meios de comunicação, assim como a propriedade cruzada – quando se é dono de rádio, televisão, jornal – e os outros investimentos destes empresários da comunicação, que também são donos ou sócios de empresas de educação, agronegócios, empresas do ramo imobiliários, farmacêutico, transporte, financeiro… A pesquisa é ampla e os dados são claros como o sol de um meio-dia sem nuvens, tudo disponível no Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil.

    E assim, defendendo a liberdade de imprensa, os donos do poder mantém seu oligopólio no Brasil, transformando todos que lutam por algum tipo de regulamentação dos meios de comunicação em comunistas, defensores de ditaduras, inimigos do mundo livre. E Lula, é bom lembrar, já ocupou todos essas posições – Eleições de 89, “Mensalão”, “Lava Jato” -, segundo a pena dos jornalões e emissoras de TV. Ocupou e continuará ocupando, basta ligar a TV ou ler um editorial do dia corrente publicado pelos principais jornais do país. Lembrando Noam Chomsky, a fabricação do consenso ainda é uma potente arma engatilhada e apontada bem no meio das ideias de toda a gente.

    Hoje, o tema é ainda mais complexo quando pensamos que, além dos veículos de comunicação, vivemos a realidade da comunicação digital global, onde um evidente monopólio estrangeiro concentra a maior parte do tráfego de informações nas redes sociais atualmente preferidas pela gente brasileira – Facebook, Instagram e WhatsApp. É neste ambiente que um problema soma-se ao outro, no caso, o algorítimo que elege o tipo de conteúdo mais apropriado para determinada visão de mundo, retroalimentando a cadeia iniciada com a construção das mensagens produzidas pela elite econômica e política do país.

    Muito mais do que regular conteúdos – o que é viável, como por exemplo, no caso de notícias falsas e campanhas de difamação – regular os meios de comunicação é uma forma de construir um grau mais avançado de cidadania e, consequentemente, de democracia. Nossa Constituição, por exemplo, traz alguns artigos sobre direito à informação, liberdade de expressão e até restrições de propriedade sobre veículos de comunicação no caso de deputados e senadores. Porém, na prática, há pouca efetividade para fazer valer o que diz a carta magna.

    Apesar de ocupar um segundo plano diante do avanço da fome e da insegurança alimentar, do desemprego, da precarização do trabalho, do preço dos combustíveis e de muitos outros fatores decisivos para a vida do brasileiro, a regulação da mídia deveria sim ser uma de nossas grandes preocupações. E agora a tarefa ficou ainda maior, visto que entre os dez mais ricos do mundo, mais da metade trabalha com internet e informática, ou seja: com os dados do nosso consumo, gerando conteúdo e nos comunicando.

    E quando fala sobre regulação da mídia perante a imprensa, Lula se coloca mais uma vez diante deste grande desafio. Não que se trate de uma questão pessoal, mas certamente terá alguma influência todas as lembranças de ter a máquina toda voltada contra si, contra sua família, contra seu partido… a volta por cima. A trama é boa, coisa de novela, vale a pena ver de novo.