Retrato da fome. foto de João Paulo Guimarães

Do sitiamento à democracia radical e participativa: mecanismos de visibilidade para a comunidade do lixão de Pinheiro/MA

Este artigo decorre de uma demarcação espacial condizente ao município de Pinheiro-MA, Brasil, local onde este pesquisador desenvolve a profissão de Defensor Público estadual. Aliando sua atividade profissional com a acadêmica, deparou-se com um grupo hipervulnerável, a comunidade de catadores/recicladores do lixão pinheirense, e partiu-se da ideia de como fazer esse agrupamento ser ouvido pelas instituições públicas e privadas.

Este pesquisador foi ao “centro nervoso” do lixão e verificou, como seus próprios olhos, a total miséria humana. A degradação em todos os sentidos. Uma dignidade humana vilipendiada pelos açoites mais cruéis do descaso público. Feito um vídeo chocante com imagens impactantes em que este pesquisador aparece “inflamando” a comunidade a participar de uma audiência pública, colocou-se em pauta um problema em que a sociedade deixou invisível.

A partir desse contexto, este pesquisador, como Defensor Público, lançou mão de um mecanismo legal de participação popular: a audiência pública. Com ampla divulgação popular e midiática, dramatizou-se e tematizou-se o problema, tornando-se agenda pública na cidade. O intuito inicial é a constituição de uma associação civil sem fins lucrativos dos catadores.

A preocupação filosófica é como um ancoramento na filosofia de Jürgen Habermas e no pensamento de Boaventura de Souza Santos poderia ser o ponto de partida para sair-se de um sitiamento para a efetivação de políticas públicas em favor daquele grupo.

A hipótese aventada por este pesquisador é que essa comunidade tem que se inserir no processo democrático discursivo na perspectiva do mundo da vida, o qual é formado pela esfera pública (instituições que promovem a socialização, integração social e reprodução cultural) e privada, através de um discurso pragmático-argumentativo na esfera pública como recurso para uma socionormatividade, com a finalidade de exigir uma série de políticas públicas.

Levando em consideração o pensamento sociopolítico habermasiano, uma determinada comunidade social, como é o caso do lixão de Pinheiro-MA, pode utilizar argumentos pragmáticos e ético-políticos para fazer valer suas aspirações, dando ensejo à exigência de efetivação daquilo que já consta em regras jurídicas, tal como a Lei 12.305/2010 (Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos), assim como à criação de outras normas que acomodem suas pretensões.

Para se alcançar a emancipação, ultrapassando o simples sitiamento, é que deve surgir uma prática comunicativa do entendimento linguístico com poder socionormativo. É nesse particular que a audiência pública tem o seu poder de congregação de participação popular.

Habermas se expressa quanto à atitude comunicativa nestes termos[2]:

Tudo o que é dito em atitude comunicativa acaba se referindo à verdade, à correção normativa e à sinceridade, pois, em toda situação em que se encontram os participantes da interação, são inevitáveis as referências ao mundo objetivo, formado pela totalidade das coisas e dos fatos, ao mundo social, formado pela totalidade das normas consideradas legítimas, e ao mundo subjetivo, formado pela totalidade das vivências pessoais, ao qual cada um tem um acesso privilegiado. Dadas essas três referências inevitáveis de cada ato de fala, ele pode ser questionado em relação seja à verdade para o mundo objetivo, seja à correção normativa para o mundo social, seja à sinceridade para o mundo subjetivo.

As normas a serem alcançadas através de uma prática socionormativa tem, nessa moldura, um conceito amplo e abrangente. Pretende-se, inicialmente, na própria audiência pública, a constituição de uma associação civil sem fins lucrativos dos catadores em que será firmado o estatuto social. A norma, portanto, nesses moldes, toma um sentido lato. A regra legal a ser perseguida é de cunho particular com amparo no ordenamento jurídico. Ou seja, a constituição da associação civil é o alavancamento para a busca de políticas públicas e materialização de direitos.

É com fundamento nessas premissas que nascem duas perguntas: como a partir do modelo comunicativo poder-se-ia sair de um sitiamento, ou de práticas somente defensivas, para a institucionalização democrática do poder político? Qual a potencialidade política do discurso de uma esfera pública comunicativa?

Para combater o silenciamento, além da socionormatividade já ressaltada, Boaventura evoca a rebeldia das subjetividades retomando uma epistemologia do Sul superadora de uma matriz colonizadora, centrando-se na sociologia das ausências e da insurgência (sociologia das emergências e ecologia dos saberes) e na democracia de alta intensidade, a partir das quais se pode chegar à uma cultura política emancipatória.

Conforme Boaventura, não se deve preocupar somente com a estrutura, com as condições objetivas, mas também com a ação, para que haja transformação social, criando-se as subjetividades rebeldes pela vontade. Tem-se que reinventar as ciências sociais para se criar uma racionalidade que possa atacar uma razão indolente. Boaventura divide essa razão indolente em duas formas: a metonímica e proléptica.

Quanto à primeira, Boaventura[3] assim se expressa:

E essa é uma racionalidade que facilmente toma a parte pelo todo, porque tem um conceito de totalidade feito de partes homogêneas, e nada do que fica fora dessa totalidade interessa. Então, tem um conceito restrito de totalidade construído por partes homogêneas. Esse modo da razão indolente, que chamo razão metonímica, faz algo que, a meu ver, é um dos dois aspectos do desperdício da experiência: contrai, diminui, subtrai o presente. (…) Então esse conceito de razão metonímica contrai o presente porque deixa de fora muita realidade, muita experiência, e, ao deixá-las de fora, ao torná-las invisíveis, desperdiça a experiência.

No que tange à segunda razão, Boaventura[4] assim acentua:

Nossa razão ocidental é muito proléptica, no sentido de que já sabemos qual é o futuro: o progresso, o desenvolvimento do que temos. É mais crescimento econômico, é um tempo ideal linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa: o futuro é infinito.

Pela sociologia das ausências, Boaventura pretende a superação de uma monocultura do saber científico pautada num tempo linear em que se naturaliza as diferenças. O conhecimento dominante exalta o universalismo e a globalização, além de dar uma importância significativa à produtividade mercantil do trabalho e da natureza. Tem-se que expandir o presente, trazendo à tona as experiências invisíveis em ataque às monoculturas.

Na sociologia da insurgência, em vez do tempo linear, as temporalidades são destacadas, reconhecendo-se os saberes e suas produtividades em substituição às monoculturas (ecologia dos saberes). Além disso, critica a razão proléptica, pois deve-se saber sobre aquilo que está nascendo para o futuro, não antecipando o futuro (sociologia das emergências).

Assim, o que propõe Boaventura é expandir o presente e contrair o futuro, ultrapassando as duas razões indolentes, mostrando as pluralidades presentes e aquilo que está nascendo.

A democracia de alta intensidade reclama uma radicalização das subjetividades rebeldes, utilizando-se dos instrumentos postos: legalidade, democracia e direitos humanos como mecanismos contra-hegemônicos. Age com a paciência infinita da utopia.

Tanto na perspectiva de Habermas quanto de Boaventura, a racionalidade atual do mundo ocidental capitalista abraça a ideia de um entrelaçamento do mercado econômico com o poder burocrático estatal. O aspecto visível disso nas democracias que se desenvolveram a partir do colonialismo é o modelo neoliberal de democracia em que o Estado é um problema. Naquela tensão do contrato social entre regulação e emancipação, o Estado passa a não ter mais o monopólio da regulação social, advindo daí um constitucionalismo global dos grupos multinacionais, gerando uma democracia de baixa intensidade.

As democracias ocidentais, além de neoliberais, são participativas. No entanto, apesar de o cidadão autorizar o mandatário a exercer o poder, o representante não presta contas do exercício do mandato, de modo que o cidadão não se sente representado tampouco há sua participação no poder. Até porque, para haver participação, o cidadão deve ter uma sobrevivência garantida, um mínimo de liberdade e acesso à informação. O capitalismo não lhe proporciona isso.

O diagnóstico de Boaventura aponta para um fascismo como regime social. Relata também as desigualdades sociais invisíveis e neutralizadas, assim como a eliminação de todos os direitos dos grupos minoritários. Percebe-se que esse diagnóstico se alinha com o de Habermas, o qual aponta a dominação da razão instrumental do mercado e poder estatal sobre o mundo da vida.

Nesse passo, como já dito, a resolução seria a expansão do presente e a contração do futuro. No presente muita experiência fica de fora, de sorte que se traria as realidades ausentes para o mundo da vida, fazendo emergir os saberes alternativos. Utilizar-se-ia os instrumentos hegemônicos (legalidade, democracia e direitos humanos) para a construção de uma democracia de alta intensidade através de um manejo contra-hegemônico daqueles mesmos mecanismos.

Nesse ponto ganha realce a audiência pública, a qual é um instrumento legal, democrático e de direitos humanos. Faz-se uma releitura desse instrumento hegemônico para utilizá-lo como mecanismo de pauta pública de um processo democrático-discursivo. Na sessão pública é viabilizada uma visibilidade com tons de rebeldia.

Por outro lado, para que tudo isso ocorra, necessário um procedimento de tradução entre os vários saberes. Uma inteligibilidade recíproca no interior das pluralidades. Para a existência de uma ecologia dos saberes, deve haver uma despolarização das pluralidades, na visão de Boaventura. Essa inteligibilidade ocorrerá por meio da argumentação.

Ainda no entendimento de Boaventura, a emancipação social somente existirá com a radicalização do que existe. Uma luta direta, ilegal e pacífica. Ou seja, uma mescla de legalidade e ilegalidade. Habermas fala, nesse tom, em desobediência civil. Assim é que se constituirá a democracia de alta intensidade. Uma intensidade democrática é o meio mais eficiente para a transformação social.

É nessa esteira que se deve pensar nos poderes de influência e sociointegrativo da ação comunicativa. Para que tal fato se constitua, os componentes sociais e políticos não podem agir simplesmente em forma de sitiamento, em somente se defender. Esse déficit de institucionalização é combatido pelo potencial político da ação comunicativa. A emancipação advinda da ação comunicativa necessita da ampliação dos domínios sociais e de uma abertura de canais comunicativos no sistema político-administrativo.

A ultrapassagem do sitiamento dar-se-á pelo poder da normatividade em conjunto com uma democracia radical e de alta intensidade, evocando-se a sociologia das ausências e da insurgência, assim como a potencialidade política do discurso de uma esfera pública comunicativa, de modo que a arena pública de discussão é o meio mais promissor de transformação social. A participação popular numa audiência pública traz à tona um problema invisível. Propõe-se uma pragmática argumentativa para gerar a norma através do consenso.

[2] NOBRE, Marcos (org.). Curso livre de Teoria Crítica. Campinas, SP: Papirus, 2008, p. 169.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Tradução de Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007. 126p, p. 25-26.

[4] SANTOS, op. cit., p. 26