Crônica de novembro 

A descrição da identidade do cronista apresenta em si uma contradição. O marxismo nos compele à ação humana para mudar a realidade. Por outro lado, a atitude cética do observador conduz à inação ou pura contemplação.

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Diz-se que o pensador René Descartes pariu a modernidade por meio da dúvida. Grosseiramente, o principal argumento da primeira das suas seis “Meditações Metafísicas” é de que a dúvida acerca da realidade do real, incluindo a própria existência do sujeito que a observa, funda a possibilidade de um pensamento real e verdadeiro, por meio do “Eu”, que pensa.

Claro. A partir da fundação das bases do pensamento moderno, será possível a construção de um projeto iluminista que tirará a sociedade das trevas e nos libertará dos grilhões do obscurantismo.

Este sujeito ensimesmado, europeu, esclarecido e libertador, cruzou fronteira e impôs seu projeto de pensamento para o além-mar, de maneira hegemônica até os dias de hoje, libertando-nos do primitivismo.

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Enrique Dussel, refletindo sobre o pensamento hegemônico a nós imposto pela Modernidade “Europeia”, entende que nós, os dominados, somos o avesso do seu projeto de emancipação. Somos “o outro”, que se depara com aquele velho sujeito ensimesmado cartesiano e grita: “eu também existo, seu sujeitinho”.

O filósofo argentino conclui que devemos superar esse pensamento europeu. Não nos entregando a radicalismos de extrema direita antimodernidade, contra vacina ou que prescrevem chã de hortelã para curar doença viral. Também afirma que não devemos cair num niilismo cético que não vê mais saída racional para o problema. Dussel nos exorta a transcender essa modernidade, fazendo inserir nesse projeto a nossa alteridade, o nosso grito de libertação. Talvez assim possamos compreender a profundida da contradição apresentada pelo autor no final do seu texto que serviu de inspiração para o cronista1:

Aos 500 anos do começo da Europa Moderna, lemos no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 1992 (UNDP, 1992: 35)20 das Nações Unidas que os 20% mais ricos da Humanidade (principalmente a Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Japão) consome 82% dos bens da Terra, enquanto os 60% mais pobres (a “periferia” histórica do “Sistema-Mundial”) consome 5,8% desses bens. Uma concentração jamais observada na história da humanidade! Uma injustiça estrutural nunca imaginada em escala mundial! E não é ela fruto da Modernidade ou do Sistema mundial que a Europa ocidental criou?”

1DUSSEL, Enrique. “Europa, modernidade e eurocentrismo”. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.