Foto: Portal Cultura 930

Texto postado no Portal de Cultura 930

Na manhã de 27 de março de 2023, na Sala Jô Soares, no 10º andar do Hotel Mabu, em frente à Praça Santos Andrade, iniciou-se o 31º Festival de Curitiba. Com uma atmosfera carregada de expectativas, a outrora “Cidade Sorriso” dava início ao maior evento de Teatro da América Latina, com a participação de diretores, curadores e de dezenas de jornalistas numa plúmbea manhã curitibana. Mas, para nossa sorte, a luz radiante das diversas trupes que por aqui “baixaram” nos presentearam com um veranico há muito tempo não visto e, principalmente, com a expressão artística que se refletiu durante a semana numa cidade cheia, alegre, retumbante, que dia a dia apagava a fuligem de dois anos de pandemia e de um modelo antigo de se governar uma nação.
“Que Curitiba é essa?” foi a pergunta feita por Giovana Soar: atriz, diretora e uma das três curadoras do Festival que anunciava o mote principal desta edição. De cara, podemos pensar que deva ser o espaço que atenda ao impacto entre aquele que faz e aquele que recebe a arte, e com isso buscar o aspecto mais genuíno dessa expressão: atender aos ditames da perseguição da perfeição. Mas, seria isso possível ou apenas uma utopia a mais para sanar as dores do viver?
Podemos pensar que se a arte é, por si só, a expressão fenomênica do encontro com o divino (afinal, ninguém faz uma música ou pinta um quadro para ser nota 7), a busca pelo absoluto, pelo inimaginável, pelo imarcescível e, por vezes, pelo inatingível, revela uma proposta inalcançável. Porque impossível. Mas, se virmos a arte como a possibilidade de profanar e de corromper o status quo e nos mostrarmos humanos, demasiadamente humanos, podemos pensá-la como a expressão extraordinária das várias possibilidades de se viver a vida que são possíveis. E foi esse o caminho escolhido pela curadoria. Isso está explícito nas peças que se apresentaram durante a primeira semana: uma mistura de ficção e realidade, seja pela voz da aclamada atriz Vera, em sua apresentação na peça “Ficções”; seja pela tensão e pela instabilidade produzida pela peça “Chão”; ou seja pela diversidade de pessoas fotografadas diariamente transitando pela praça na impressionante peça Square.
É preciso dizer, também, que a organização do evento começou seus trabalhos durante o período de administração da extrema direita e acabou no começo do novo governo, mais amplo e democrático. Este arco temporal, entre essas duas formas antagônicas de políticas públicas no tratamento da Cultura, é o ponto zero para entender o que é a 31ª edição do Festival. O resultado disso é a entrega feita pela curadoria de 32 peças na mostra oficial, extrapolando o número de 25 que foram requisitadas pelos patrocinadores do evento.
A aposta da curadoria foi em manter um número majoritariamente feminino em sua organização, assim como em peças que abraçaram toda sorte de gêneros, de classes, de etnias, de temas e apostou na ocupação pública de uma cidade viva que se misturou, que se amou, que se cuidou e que fez da rua seu templo, mesmo sendo uma cidade que precisa de muito mais inclusão, onde a passagem de ônibus é a mais cara do Brasil, tem muito o que fazer para retirar esses freios. Mas, as ruas, como visto, também, em diversas noites nas calçadas do Restaurante Nina, refúgio dos participantes para atender necessidades gastronômicas e afetivas dos encontros tanto dos visitantes, dos turistas, quanto dos habitantes desse ninho de esperança, parece agora ser ocupada por gentes, diálogos, culturas e ideias.
O rompimento com aquilo que não serve mais foi tarefa do Festival, principalmente aqui na “capital madrasta” (expressão do multifacetado agitador cultural Vitor Salmazo, elenco da peça Square), útero gravídico do Golpe de 2016. Isso mostra que estamos rasgando as vestes e as máscaras do horror das trevas e indo em direção ao que já colocamos acima: a pluralidade da vida, das várias possibilidades de afeto, do expressar e do sentir.
A curadoria, com seu “olhar de ciclope” para a proposta deste Festival, promoveu o encontro entre artista e público e alçou um arco muito maior do que contradição e certeza, ou tempo e espaço, ou branco e preto; lançou, sim, um arco-íris resistente, diverso, colorido e alegre para um futuro de uma nova esperança apoteótica.

Autores:

Carla Françoia é psicanalista, feminista, amante dos cães e Doutora em Filosofia pela PUCPR.
Felipe Mongruel é especialista em Ética pela PUCPR, foi advogado da Vigília Lula Livre, liderou o coletivo que ia semanalmente durante 14 meses em frente ao MPF cobrar explicações dos procuradores da força tarefa Lavajato, foi professor de filosofia, apresenta o programa Vamos à Luta e é um dos diretores do Jornal América Profunda.