Categoria: Volume III * n°. 3 * Março de 2023

Edição de Março de 2023 do Jornal América Profunda

  • Mais do mesmo mês de março

    Por  Desiree Salgado

    O mês de Março: o mês das mulheres, em que se é necessário ano após ano se lutar pelas mesmas coisas, em que, ao final dos 31 dias, os homens voltam a ocupar todos os espaços que são concedidos as mulheres, somente, neste mês. Março também foi marcado pelo aniversario de nossa cidade, Curitiba, e pelo lastimável marco do dia 31 de Março, o golpe de 64.

     

    Foto da Autora: Desiree Salgado
  • O MARX É POP

    Willian Carneiro Bianeck

    Aniversário de falecimento parece uma comemoração mórbida, mas não é incomum. Santos ganham festividades em suas mortes, ícones históricos viram feriados e filósofos são apenas lembrados por seus leitores que afirmam entenderem suas obras e para aficionados em citações duvidosas de internet. E tem pessoas como Marx, lembradas por detratores e entusiastas nas efemérides de sua despedida do mundo materialista que tanto lhe causou interesse.

    Não entendo muito bem sobre morte, porque é um assunto que evito. A ficção em seus mais variados gêneros adore especular razões concretas e etéreas que nos levam a partir deste para um outro plano ou apenas virarmos comida aos vermes que primeiro roerem as nossas frias carnes, para dar uma de pedante e botar uma referência machadiana por aqui. Afinal, textos sobre finais são todos parecidos e seguem o roteiro já esperado pelo leitor. Grandes histórias exigem finais poderosos, o que não foi o caso de Karl Marx, que foi acometido por doença e morreu na penúria, sem ter tido êxito quando vivo no seu intento de mudar o mundo. Seu projeto, contudo, não seria esquecido e solapado por sete palmos de terra.

    A biografia do barbudo comunista confunde-se com sua própria obra. Não era conhecido muito por seu apreço aos grilhões acadêmicos, pois acreditava que a filosofia não poderia ficar restrita aos empoeirados gabinetes e bibliotecas universitários. Daí porque vivia em piquetes com seu fiel escudeiro Engels, lançando o seu “Manifesto do Partido Comunista” para tentar empoderar a classe proletária e demonstrar que outro sistema além do capitalismo é possível. A sua última tese sobre Feuerbach resume o mantra que carregou em suas trajetórias: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

    Das releituras leninistas e gramscianas, ao estruturalismo marxista de Althusser, as ideias marxistas continuam em voga, persistindo como uma pedra no sapato para o sistema capitalista. É muito difícil se encontrar qualquer análise séria sociológica sem levar em conta a importância dos ensinamentos da obra colossal “O Capital”  e seus volumes; ainda que incompleta, o estrago que os estudos e escritos trouxeram sobreviveram até mesmo à ampla propaganda desprestigiosa dos principais meios de comunicação, empresários e até mesmo de intelectuais que não simpatizam com suas ideias.

    “Um espectro assombra a Europa… O espectro do comunismo”: essa frase é vista como um mote para disseminar o medo de um mundo em que o capitalismo não se sustenta mais; na verdade, é uma mensagem para nos avisar que um outro mundo é possível e necessário, um mundo em que bilionários e suas sandices sejam apenas caricaturas históricas e a fome e a miséria partes de narrativas de terror que não estarão mais nas estatísticas contemporâneas.

    Karl Marx hoje continua pop. Suas representações não se limitam a artigos acadêmicos ou livros enormes lidos somente por seus autores; passeiam na literatura, cinema e artes gerais. Há inclusive um passeio turístico em Londres chamado “Karl Marx The Walking Tour” que leva o turista de classe média às localidades preferidas do filósofo. Isso sem falar na sua própria imagem transformada em cédula de dinheiro na sua cidade natal, Trier, de zero euros: não valia nada de fato, mas era vendida à época por 3 euros. O fetiche pela mercadoria que se tornou a sua própria imagem.

    Toda essa ladainha tem como conclusão o seguinte: Marx pode ter morrido no mundo materialista que tanto destrinchou, mas continua vivíssimo por meio das ideias e projetos que construiu e criticou. A morte do filósofo alemão não faz sentido, não para quem ainda segue seus preceitos. A data de hoje se presta mais para reavivar a sua atualidade e popularidade, para o bem ou mal. Para a parcela mais tacanha, Karl Marx representa tudo aquilo que não presta e deve ser combatido. Para os demais, é alguém que deve cada ver mais levado a sério, concordando ou não. Para Oswald de Andrade, era motivo para beber: ““ignorando o Manifesto Comunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio”. Para mim, trata-se de meu norte para seguir no meio de um mundo recheado de contrastes e gente bruta que ainda crê na barbárie como algo natural.

    Willian Carneiro Bianeck é boêmio por opção, advogado por obrigação, péssimo literato em disfunção e sociólogo em eterna formação.

  • QUEM MANDOU MATAR MARIELLE?

    Por: Felipe Mongruel

    Fotografia: Sandro Moser

    Há 5 anos essa pergunta mata Marielle todos os dias. Corrijo, MarielleS. O assassinato no Largo do Estácio, no dia 14 de março de 2018, junto de seu motorista Anderson Gomes, deixou uma ferida aberta no Brasil, melhor representado pela ferida aberta da impunidade e da ineficiência do Poder Judiciário em resolver causas que restam como vítimas pessoas negras, mulheres e de origem pobre.
    Claro, não os interessa. O direito protege o patrimônio, em primeiro lugar. Logo, por conclusão óbvia, quem tem patrimônio é defendido pelo Poder Judiciário. E quem tem patrimônio? O capitalista.
    Mais de 5 equipes de promotores, mais de 3 ou 4 delegados para resolver o inquérito, mais decisões a favor e contra vindas dos Tribunais Superiores para se definir o óbvio, quem mandou matar Marielle, e se estes seriam julgados por um Júri Popular.
    Vamos a letra da lei:
    Por força constitucional, o Tribunal do Júri tem a competência de julgar crimes dolosos contra a vida.
    O artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea d da Constituição Federal determina que é da competência do tribunal do júri o julgamento de crimes dolosos contra a vida. Assim, o júri só julga os crimes que se enquadram nesse rol juntamente com os crimes conexos.
    Os crimes dolosos contra a vida são os que estão previstos nos artigos 121 a 126 do Código Penal, quais sejam: homicídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, infanticídio, aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento e o aborto provocado sem o consentimento da gestante. Estes crimes são julgado por sete jurados (juiz leigo).
    No entanto , existem os crimes conexo de competência do Tribunal do Júri que segundo entendimento do STF, nos casos de crimes de competência do Tribunal do Júri, os Crimes que são Conexos a eles serão atraídos ao Tribunal, fazendo com que crimes conexos, por exemplo: um homicídio é cometido em conjunto com outro que não se encaixa na previsão de ser doloso contra a vida, os dois serão julgados pelo tribunal do júri. Se um homicídio é seguido de um estupro, os dois serão julgados pelo tribunal do júri por terem sido praticados no mesmo contexto.
    Os assassinos estão presos: Ronie Lessa e Élcio Queiroz, porém de maneira preventiva, nem os mesmos foram ainda julgados. Capaz ainda de serem anuladas determinadas prisões no futuro pelo motivo de “incompetência institucional” haja vista não conseguirem dar vazão às diligências necessárias.
    Ouvi hoje, onde completa-se 5 anos da impunidade, da sua irmã, Anielle Franco, atual ministra da Igualdade Racial que devemos confiar nas instituições.
    Quais instituições, srta Anielle?
    O IBGE? Esse eu confio, de resto, muito poucas se salvam. Quanto mais as que julgam crimes contra pobres no maravilhoso e decadente(infelizmente) estado do RJ.
    Decadente mesmo, 5 anos para descobrir a morte de uma Vereadora, com altíssima repercussão nacional e internacional, com zilhões de interferências dos Poderes Executivos na troca de investigação na Policia Civil, na remessa de Inquérito para Policia Federal ou para qualquer outra competência só ajudam a população brasileira a manter-se desacreditada.
    Não nas Instituições, como já é histórico, casos como o da Polícia, seja Civil seja Federal, mas desacreditada da vida, sabendo que não seja de outra maneira a não ser por via da Desobediência Civil que as pessoas cuspirão esse nó na garganta.
    Em Curitiba, um vereador foi cassado por entrar numa Igreja, com perdão oficial da cúria. Não fosse a interferência do Supremo Tribunal Federal, depois da atuação de procuradores reconhecidíssimos do Planalto Central, o mesmo estaria inelegível.
    Lula precisou ir preso e aguentar 1 ano e 7 meses numa solitária até que viesse à tona as revelações promíscuas entre juiz e procuradores pela Vaza Jato, do jornal Intercept Brasil.
    O Poder Judiciário mente todos os dias, ao dizer que está na obediência da letra da lei. É triste, pra não dizer indignante, que as pessoas ainda não vejam que o verdadeiro inimigo é o capitalismo.
    Quer ver só: amanhã, dia 15, é dia do consumidor.
    Quem será mais lembrado em março, Marielle ou Alexia?
    Que nos organizemos em coro, feito aquelas 3 mil galinhas francesas que se uniram para matar uma raposa que abocanhava o galinheiro e que façamos à luta de classes.
    Todos os dias, em cada esquina. Pra não perder o foco, a fé e a coragem que o poder vem do povo.
    Que trabalha todo dia com um milhão de incertezas na cabeça, batendo pra lá e pra cá, numa humilhação contínua ao grande capital, desde o dia que se nasce até o dia que se morre.
    E no dia 14 de março, pela quinta vez, com a incerteza de quem mandou matar Marielle.
    Que seja a última.

  • Mulher

    Por: Ana Flávia Bassetti

    Ilustração: Pedro Alencar

    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    tenho que amar incondicionalmente o intolerável
    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    devo ser naturalmente maternal
    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    devo me resignar. devo acatar.
    recatada.
    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    não posso pecar.

    minhas transgressões devem ser justificadas
    minhas fraquezas devem ser “femininas”
    minha dívida permanece inquebrantável.

    pago com minhas mãos para te servir
    com meus olhos para te admirar
    sou ouvidos para te ouvir
    e boca para te comer
    calada.

    minhas curvas servem ao teu gozo
    minha sensibilidade ao teu choro engasgado.

    e eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    você supõe
    devo saber perdoar

  • Todas as mulheres

    Por: Ana Flávia Bassetti

    Fotomontagem com imagens de Freepik por Rebeca Fonseca

    agora quero me perder no feminino.

    quero poder acender a ânima neles que sofrem
    animados com o que vem de fora
    os perdidos, os coitados, os sós.
    desejo.

    o feminino me chama há tempos
    desde antes de mim mesma eu já vivia em partículas femininas de plantas e animais
    de pele e amor
    de gioia e gratidão.
    eu venho através de todos os tempos para chegar em mim
    através de todos os ciclos.

    queria poder acender a ânima deles que sofrem
    acariciar suas dores
    resgatar seus poemas
    dizer:
    podem ser sentimento!
    podem ser!

    eu sou todas as mulheres
    sou a carola com tesão
    a puta frígida
    a viúva negra que presencia de novo e de novo e de novo a sua incapacidade para o amor.
    a tia maconheira
    aquela velha carpideira
    chorando um morto que não é seu.
    eu sou a criança com fome
    a avó sociopata
    a idosa com o chicletes na esquina da vida.
    sou maria imaculada
    eu sou a freira no cio
    eu sou uma bióloga marinha no deserto
    que não consegue sentir o sol.
    eu sou todas aquelas rejeições
    todos os gozos
    todos os peitos mamados e as abelhas rainhas
    eu sou aquela cadela na rinha.
    sou aquela deusa do paleolítico
    com sua própria política
    eu sou a fertilidade dos pomares
    e a larva na fruta que anuncia outra vida que vem
    eu sou a mãe infértil
    a soltura da menina
    estou desarmada.

    eu sou o suor da atleta e a borboleta arrancada do seu porvir para adocicar o casamento
    eu sou aquela velha guerreira com licença para chorar. e não venha me amordaçar.
    eu sou a filha desgovernada
    aquela moça mal amada
    eu sou a réstia de luz que ilumina a boneca na prateleira.
    sou a ferpa que corta
    eu sou a última gota
    o choro de madrugada
    a beleza de uma toada à noite no sertão.
    eu sou aquela menina estranha
    a musa do poeta
    sou pomba gira e loba da estepe.
    eu sou aquela que dança em volta da fogueira
    e também aquela que nela queima.
    eu sou todas elas, as perdidas
    eu sou a camisa passada à ferro quente que não alisa.
    eu sou a vertigem do abismo
    sou a virgem des-himetizada pelo selim da bicicleta.
    sou tudo o que dói e grita
    e tudo o que canta
    sou o rubor no meio do salão de dança
    mas sou também a mão que segura a lança.
    eu sou este fluxo em mim
    sem fim.

    eu sou essas todas e todas elas me são

    estou sã.