Categoria: Mulheridades e Feminismo

Coluna Feminismo. Editor responsável:

  • A Primeira Advogada do Brasil

    Por  Desiree Salgado

    Decima Terceira coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado
  • Feminicídio

    Por  Desiree Salgado

    Decima Segunda coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado
  • Copa do Mundo Feminina

    Por  Desiree Salgado

    Nona coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado
  • Biografias

    Por  Desiree Salgado

    Sexta coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado
  • Mais do mesmo mês de março

    Por  Desiree Salgado

    O mês de Março: o mês das mulheres, em que se é necessário ano após ano se lutar pelas mesmas coisas, em que, ao final dos 31 dias, os homens voltam a ocupar todos os espaços que são concedidos as mulheres, somente, neste mês. Março também foi marcado pelo aniversario de nossa cidade, Curitiba, e pelo lastimável marco do dia 31 de Março, o golpe de 64.

     

    Foto da Autora: Desiree Salgado
  • Mulher

    Por: Ana Flávia Bassetti

    Ilustração: Pedro Alencar

    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    tenho que amar incondicionalmente o intolerável
    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    devo ser naturalmente maternal
    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    devo me resignar. devo acatar.
    recatada.
    eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    não posso pecar.

    minhas transgressões devem ser justificadas
    minhas fraquezas devem ser “femininas”
    minha dívida permanece inquebrantável.

    pago com minhas mãos para te servir
    com meus olhos para te admirar
    sou ouvidos para te ouvir
    e boca para te comer
    calada.

    minhas curvas servem ao teu gozo
    minha sensibilidade ao teu choro engasgado.

    e eu que trouxe todos os pecados ao mundo
    você supõe
    devo saber perdoar

  • Todas as mulheres

    Por: Ana Flávia Bassetti

    Fotomontagem com imagens de Freepik por Rebeca Fonseca

    agora quero me perder no feminino.

    quero poder acender a ânima neles que sofrem
    animados com o que vem de fora
    os perdidos, os coitados, os sós.
    desejo.

    o feminino me chama há tempos
    desde antes de mim mesma eu já vivia em partículas femininas de plantas e animais
    de pele e amor
    de gioia e gratidão.
    eu venho através de todos os tempos para chegar em mim
    através de todos os ciclos.

    queria poder acender a ânima deles que sofrem
    acariciar suas dores
    resgatar seus poemas
    dizer:
    podem ser sentimento!
    podem ser!

    eu sou todas as mulheres
    sou a carola com tesão
    a puta frígida
    a viúva negra que presencia de novo e de novo e de novo a sua incapacidade para o amor.
    a tia maconheira
    aquela velha carpideira
    chorando um morto que não é seu.
    eu sou a criança com fome
    a avó sociopata
    a idosa com o chicletes na esquina da vida.
    sou maria imaculada
    eu sou a freira no cio
    eu sou uma bióloga marinha no deserto
    que não consegue sentir o sol.
    eu sou todas aquelas rejeições
    todos os gozos
    todos os peitos mamados e as abelhas rainhas
    eu sou aquela cadela na rinha.
    sou aquela deusa do paleolítico
    com sua própria política
    eu sou a fertilidade dos pomares
    e a larva na fruta que anuncia outra vida que vem
    eu sou a mãe infértil
    a soltura da menina
    estou desarmada.

    eu sou o suor da atleta e a borboleta arrancada do seu porvir para adocicar o casamento
    eu sou aquela velha guerreira com licença para chorar. e não venha me amordaçar.
    eu sou a filha desgovernada
    aquela moça mal amada
    eu sou a réstia de luz que ilumina a boneca na prateleira.
    sou a ferpa que corta
    eu sou a última gota
    o choro de madrugada
    a beleza de uma toada à noite no sertão.
    eu sou aquela menina estranha
    a musa do poeta
    sou pomba gira e loba da estepe.
    eu sou aquela que dança em volta da fogueira
    e também aquela que nela queima.
    eu sou todas elas, as perdidas
    eu sou a camisa passada à ferro quente que não alisa.
    eu sou a vertigem do abismo
    sou a virgem des-himetizada pelo selim da bicicleta.
    sou tudo o que dói e grita
    e tudo o que canta
    sou o rubor no meio do salão de dança
    mas sou também a mão que segura a lança.
    eu sou este fluxo em mim
    sem fim.

    eu sou essas todas e todas elas me são

    estou sã.

  • Intensidades

    Por: Wilson Ramos

     

    Foto: Jean Cattufe/ Getty Images

    Um futebolista brasileiro encontra-se preso em Barcelona sob acusação de estupro de uma jovem de 23 anos no banheiro de uma boate. Trata-se de um homem profundamente cristão. A ponto de tatuar Jesus no próprio corpo. Ele seria um exemplo de excesso de cristianismo? Ele é bolsonarista. Seria um exemplo de fascismo cristão no Brasil?

    Responder a essas perguntas não é fácil e traz um enorme risco de ferir susceptibilidades, pois a fé nos mitos, por definição, é irracional. Acabamos sempre voltando para a eterna discussão entre essência e excesso.

    O problema não estaria na essência do capitalismo, dizem alguns, mas apenas no seu excesso, ou seja, no neoliberalismo ou no ultra-liberalismo, a forma mais intensa de capitalismo. Deram o golpe em 2016 para implantar o ultra-liberalismo sem limites de Guedes e Bolsonaro. E hoje vivenciamos as consequências deste capitalismo em sua forma mais intensa.

    Outros, pelo contrário, sustentam que em ambos os casos a questão residiria na essência dessas duas maneiras de existir em sociedade, muito compatíveis entre si. O capitalismo seria essencialmente injusto, e não apenas o seu excesso seria perverso. Essa mesma modulação pela intensidade serviria também para a crítica de todas as religiões e de algumas igrejas cristãs de um modo bastante escancarado.

    Dizem mais: essas duas maneiras de existir muito intensas (o ultra cristianismo e o ultra liberalismo) seriam complementares e reciprocamente constitutivas. Uma seria funcional para a outra.

    Reformulando a questão: o problema estaria na essência destes dois mimetizados sistemas de valores que caracterizam a contemporaneidade ocidental? Ou a dimensão da nossa tragédia decorreria apenas da modulação na intensidade da fé em cada uma dessas crenças hegemônicas no Brasil bolsonarista?

    O futuro que estamos construindo depende muito destas respostas.

    Como trataremos coletivamente os excessos talvez seja até mais urgente e necessário do que discutirmos as essências desses dois sistemas de valores que caracterizam o fascismo bolsonarento. Mas em algum momento, até para que consigamos nos libertar desse obscurantismo medieval, teremos que ter a coragem de criticar as essências desses sistemas de opressão fundados na irracionalidade.

  • Hoje dobrei as tuas roupas pela última vez.

    Por: Ana Flávia Bassetti

    O despertador tocou, como sempre, às oito. Quarta-feira. Ontem, tinha prometido a mim mesma que no dia seguinte iria para a aula de funcional das nove. Estava tudo programado: despertador, me permitir uma soneca de cinco minutos, olhar para a Madá, dar bom dia, me aninhar um pouquinho com ela e, então, levantar, tomar uma proteína, levá-la para o xixi já com as roupas da academia que ficaram sobre a cama ontem porque foi dia de musculação e não suei muito, voltar, escrever pelo menos dois dos quatro textos que tenho que entregar até sexta, ao cair do sol sair com a Madá de novo, voltar, tomar duas taças de vinho e me permitir, agora sim, chorar enquanto repasso todos os motivos pelos quais eu devo ir embora da sua vida, criar coragem, te mandar uma mensagem para combinar de conversar e enfim resolver as coisas e poder começar meu luto com dia marcado para terminar. Voltar a viver sem você.

    O despertador tocou e os cinco minutos de soneca permitidos se transformaram em três horas. O sono dissolve a dor pontiaguda que eu sinto quando penso no que tenho que fazer e torna-se dilacerante quando penso nos motivos pelos quais eu ainda procuro motivos para não fazê-lo. Agora acordei e ela voltou. A Madalena não está. É estranho, pois ela tem se tornado cada vez mais dorminhoca nas manhãs, quase nunca se levanta antes de mim. Agora lembro que, no despertar de algumas sonecas de cinco em cinco minutos que aconteceram por três horas, tinha quase que intuído uma agitação pela casa, sem forças para procurar saber o que acontecia. Levanto, o pijama de inverno e as meias estão no chão, como de praxe quando faz frio e eu preciso colocar pijamas em camadas para me esquentar no início da noite e ir arrancando suas partes durante a madrugada. Talvez os alívios em fases sejam melhores do que aqueles que vêm de uma vez. Mas as dores, também?

    Em Curitiba faz muito frio desde sexta, desde que eu falei com você pela última vez. Parece que o clima fez questão de forjar o cenário ideal para eu chafurdar de modo teatral na minha dor. Coloco o roupão, abro as cortinas, sinto vergonha de estar levantando só agora. Vou para sala. Vou fazer um café e vai dar tudo certo, produzo até mais tarde e ainda dá tempo do vinho, ainda dá tempo de chorar. Olho para a Madalena no sofá. Ela me olha com aqueles olhinhos de quem fez uma coisa que não queria fazer, mas teve que fazer. Eu a entendo. Penso que é mais fácil para ela do que para mim fazer uma coisa que não quer fazer, mas precisa fazer. Olho para o tapete da sala. Um persa bem colorido, comprado em uma promoção porque tinha pequenos defeitos. Eu gosto dos defeitos dele, os defeitos doam um ar de  originalidade para as coisas. Para as pessoas também, e eu acredito muito que é nos defeitos que acontece o encontro. Mas e quando os defeitos do outro puxam os nossos para fora? O tapete também tinha a função, quando comprei, de dar um ar meio cabaré à sala. Talvez ele nem faça mais sentido, por causa do que eu me permiti sonhar com você. Sou bem mais de um domingo de jardim, amigos e crianças do que do cabaré, hoje. Quero ser.

    Entre as cores bem vivas do tapete, um cocô dividido em duas fases: uma porção grande de merda dura, normal, dessas que as mães se orgulham quando veem, imagino, não só porque sugerem um funcionamento saudável do intestino, mas porque dão bem menos trabalho para limpar; junto dela uma outra porção mais líquida, de cor amarelada, para nada como uma merda saudável. Imediatamente: “ela sabe que alguma coisa está acontecendo”. Foi você quem me disse que o intestino era mais coração que o próprio coração? Me dói pensar que a tenho negligenciado esses dias, tenho estado impaciente. Mas também, o clima desde sexta não tem ajudado.

    Na primeira vez que você veio à minha casa foi um festival de diarreia da Madá como nunca tinha acontecido, e os cocôs de aspecto não saudável duraram por, pelo menos, um mês. Eu sempre soube que era emocional e você, a princípio, disse que era paranoia minha, mas depois concordou.

    Ela sabe que alguma coisa está acontecendo. Os bichinhos sentem. Talvez ela só sinta insegurança por notar uma atmosfera diferente e temer por mudanças que a afetem. Ela já sofreu bastante. Será que ela lembra do sofrimento ou os cachorros esquecem das dores quando por fim amados, ou novamente amados? Será que eu já senti essa dor que estou sentindo e esqueci? Será que o corpo falho que, quando submetido a algum tipo de estresse, transforma a merda saudável em merda problemática e ruim de limpar é o mesmo que lindamente nos faz esquecer das dores mais profundas que sentimos um dia? E será que, então, o meu será capaz de me fazer esquecer essa dor horrível de ter que ir embora te amando? Bom, mesmo que ela não seja sensível assim eu sei que ela sabe que alguma coisa está acontecendo porque as lambidas no meu rosto nunca foram tão salgadas, de certo. Ou porque sente saudades tuas.

    Limpo a merda física do tapete. Não brigo com a Madá – nem pensar! – ela não tem culpa. Muitas vezes a gente não tem culpa pelas merdas que faz, porque a gente tinha que fazer ou porque era só o que a gente podia fazer no momento. Penso em você, agora com essa espécie de compaixão. Não sei se é compaixão ou é meu organismo – falho ou lindo? – me fazendo criar cenários onde posso ficar com você.
    Café, cigarro, jogo fora o resto do café para pegar um pouco mais, mais quente, e fumo um cigarro a cada vez que faço isso até o café acabar. A academia já era. Tudo bem, ainda tenho dias suficientes para ir as três vezes na semana que havia combinado comigo mesma. Leio um post aleatório no instagram: “Erivelto trabalha consertando dragões”. Oi? Leio de novo: “Erivelto trabalha consertando fogões”. Será que eu faço isso? Será que eu transformo fogões que precisam de reparos em dragões quebrados? Dá pra consertar um dragão? Olho no relógio do fogão: estou atrasada. Penso em como vou arrumar o relógio do fogão quando a luz cair de novo. Eu tinha tentado arrumá-lo inúmeras vezes sem sucesso e, por fim, me resignado a ficar sem ele. Mas, você chegou e o arrumou. E arrumou de novo depois daquele domingo quando ficamos sem luz, fomos para a sua casa e tomamos sorvete no carro até a chuva passar.

    Você arrumou o meu fogão. Eu consigo consertar o teu dragão?

    Tenho que me desapegar das lembranças, tenho uma reunião online importante, em menos de meia hora agora. Tudo bem, o banho vai ser sem lavar o cabelo já que não fui para a academia. Ligo o chuveiro e vejo a sua escova de dentes e o vibrador que mora entre os frascos de shampoo desde que você foi embora. Ele também me ajudou a decidir fazer o que tem que ser feito, mesmo que doa muito e apesar da tua presença no banheiro em forma de bilhetes espalhados pelos azulejos. “Uma casa, um quintal, nossa família, música, comida e carinho”. Dói uma dor que vem na garganta. Tenho que fazer passar. Me apego à visão de uma eu muito aflita sempre te esperando, na casa do bilhete no azulejo. Era verdade esse bilhete? Vou até o quarto de vestir para deixar a escova de dentes com as suas outras coisas que ainda estão aqui. Também quero separar a roupa antes de tomar banho já que está frio e eu tenho, nesses dias, tido dificuldade para me concentrar na linearidade das escolhas cotidianas. A gente faz uma coisa enquanto pensa na próxima coisa que tem que fazer e quando está fazendo essa coisa a gente pensa na próxima. Funcional. Funcional como eu tenho que ser agora.

    Vou até o quarto e lá estão as roupas de cama e toalhas da chácara dos seus pais dobradas desde a semana passada. As manchas de café, vinho e feijão deixadas pelos dias felizes nos panos de prato. Lá também estão o seu conjunto de moletom preto que eu adorava vestir e sua camisa cinza que eu acho bonita. Me pergunto porque você só a usou comigo da última vez que nos vimos. Penso que nunca mais vou te ver com a camisa cinza bonita. Um pé de meia…onde está o outro? Eu tinha tirado essas roupas da secadora ontem de manhã, elas estavam misturadas às minhas. Elas eram de quando a gente estava misturado. Na ocasião, fiz questão de dobrá-las de um jeito que pudessem ser guardadas numa sacola para te entregar. Bem displicentemente, como eu queria que você achasse que é o que eu sinto, como eu queria me sentir em relação a você, de um jeito que você visse o que perdeu, já que transformou as roupas bem dobradas em roupas apenas postas de um jeito para caber em uma sacola. Vejo a meia de lã do seu filho, tricotada provavelmente pela sua mãe, pendurada no varal. Não coloquei na secadora para não estragar. Dor. Volto a sentir compaixão, agora de mim. A lembrança do cuidado que eu amava ter com vocês. Decido dobrar as roupas do mesmo jeito que cuidava da gente: com todo o carinho e satisfação dos quais nem sabia ser capaz. Vou dobrar como aquela eu que amei conhecer, aquela que voltou a sonhar e aprendeu a fazer planos. Lembrei do que contou uma amiga sua que eu gosto bastante, ainda que tenhamos tido tão pouco tempo. Ela disse que no seu antigo relacionamento as roupas eram lavadas separadamente ou cada um lavava as suas roupas, algo assim. E, logo depois, você passou a lavar as roupas aqui. Pela coincidência de não ter máquina de lavar e eu sim, ou quem sabe não só por isso. E eu passei a dobrar as suas roupas quando elas ficavam secas junto com as minhas e você não estava. E eu gostava. Não se tratava de fazer um serviço, nem tinha a ver com a minha necessidade infantil de ser boa para ser amada. Se tratava de curar as tuas mágoas passadas. Se tratava de te amar. Então, hoje pela manhã, dobrei as tuas roupas pela última vez.

    Já é noite. Vou até o quarto de vestir para, enfim, colocar uma roupa quente e confortável e ficar pronta para tomar o vinho e permitir as lágrimas, agora livres dos sorrisos funcionais do dia. Vejo suas roupas em cima da cama, muito bem dobradas. Ao lado delas, as minhas: roupas limpas misturadas com roupas já usadas, todas elas largadas e amarrotadas. E através dessa metáfora meio cafona e muito triste percebo tudo o que eu vinha fazendo por você e, sobretudo, tudo o que tenho feito de mim. Aborto as novas lágrimas. Escrevo. É assim que me desnudo, é assim que me entendo, é assim que me curo. E agora, escrevendo esta exata linha, apesar da dor, sinto que estou aqui. Voltei a ser. Um pouco mais em mim, sinto a confiança que preciso para te ver, para resolver. E, se você se esquivar, tenho esta crônica para te mandar. Ainda que, talvez, você nunca vá ler.

  • Amores líquidos e algoritmos. Sobre quebrar o coração e os mecanismos (in)sensíveis de venda das redes.

    Por: Ana Flávia Bassetti

    No final do ano passado perdi, inesperadamente, dois clientes que pagavam mais da metade do meu salário. No mesmo dia, recebi uma compra feita pela internet: um maiô e uma blusa num total de R$489 que resultaria em, no máximo, vinte minutos de satisfação dos meus desejos. Olhei para aquilo e vi que era um absurdo. Além de não fazer parte da minha realidade, eu precisava de fato daquelas coisas? Foi quando estabeleci o seguinte propósito para o ano que chegava: não compraria nada de absolutamente supérfluo. Com um sorriso de satisfação de canto de boca, pensei: “o que esse algoritmo sacaninha vai me oferecer agora? Hein, hein, hein?”. Claro que eu não tenho interesses estritamente supérfluos, mas eles são os que mais rendem para a máquina, certo? Bom, desde então ele tentou várias coisas, mas sem muito foco. Me oferecia de seguro para cachorro até curso de psicanálise. Sim, eles estão nos escutando e metrificando o tempo todo, mas acho que a minha vida andava mesmo mais eclética e aleatória.

    Foi quando, no começo de maio, me apaixonei. Perdidamente. Dessas coisas que, em pouquíssimo tempo, você tem certeza que é pra sempre porque você quer que seja. Você quer tanto que dê certo porque você quer tanto, que você quer logo que a pessoa venha com as merdas todas dela e quer ir com todas as suas e vamos resolver juntos e ser felizes para sempre! Há um mês me encontrava apaixonada. Feliz. Realizada. Satisfeita. Claro que nem tudo são flores, mas estava mais crente na vida do que nunca na vida e, consequentemente, menos consumista do que nunca.

    Então, sabe o que o fucking algoritmo fez? Ele não me deixou esquecer em nenhum momento do que eu poderia perder. Como seria ruim se eu perdesse. E, claro, o que fazer para não perder. E ele nem precisava! Como boa ansiosa depressiva, eu sabia que, a qualquer momento, poderia cavar minha ruína sozinha (ou não, vai saber…). Mas acho que ele ajudou. Ah! Ajudou! Até comentei com meu namorado na época (engraçado usar “na época” para um mês atrás, Bauman explica?) sobre os conteúdos patrocinados que começaram a aparecer na minha timeline (ainda é timeline que fala?). Coisas como “faça ele sonhar todos os dias com você”, “como segurar um homem”, “descubra se ele te ama de verdade em 10 passos”, “10 posições para fazer na cama e esquentar as coisas”, “baixe agora o app e descubra se você está sendo traída”…dessas para pior…

    E eu, mesmo que a carcaça diga muitas vezes o contrário, nunca fui lá muito segura. Alguém é?

    E também, neste exato momento, estou na fase de procurar culpados. Peço que não me julgue.

    Depois de um mês de êxtase e alegria, havíamos nos desencontrado e, exatamente no dia 04 de junho, como em muitas outras tantas vezes na minha vida, saí decidida a provar para o mundo que era melhor sozinha, sem sucesso. Não que eu não seja boa sozinha, mas quando tento provar saibam que a merda está feita. Saibam não, saiba de uma vez por todas você, Ana Flávia! Bom, fato é que levei um golpe emocional seguido de um golpe financeiro: caí naquele da troca de cartões de banco, sabe? Eu, muito inocente e pseudo alegre saindo da festa e ainda ouvindo na minha mente inquieta resquícios de “juro que não vai doer se um dia roubar o seu anel de brilhante, afinal de contas dei meu coração e você pôs na estante…. aí de mim que sou romântica”, fui comprar mais uma cerveja desnecessária de um ambulante e bum!, já era. Muito dinheiro pelo ralo. E mesmo depois de, enfim, ter uma parte recuperada (do dinheiro, não dá dignidade) e de conversas com amigos na tentativa de entendimento de que o dinheiro, como os homens, vem e vai e que esses casos têm a ver, de alguma forma, com a desigualdade social que nos assola, ainda me sinto uma merda.

    Hoje, quase cicatrizada depois de uma semana me refastelando em lágrimas pelos golpes tomados, ouvindo música caipira para ter um pouquinho mais de fé no mundo e tentando sentir um cheiro de mato no bouquet do vinho barato (para quem?) do mercado, eis que o algoritmo vem me aterrorizar novamente. Calma, não me julgue tão cedo. Sim, uma semana é pouco, mas as coisas têm sido assim né? Tem um autor do qual eu gostava mas que agora vai na Fátima Bernardes e que eu não gosto mais por isso – porque tem esse meu lado escroto e pseudo intelectual que desmerece as coisas que, de alguma forma, se adaptam a este mundo escroto e funcional – que diz que a conta que a gente paga ao finalizar um relacionamento é de 10%. Nada a ver com a música sertaneja. Segundo ele, ao final de cada história a gente tem uma conta de 10% do tempo que ela durou para pagar em dor de cotovelo. Ou seja, se você ficou com alguém durante um mês, vai sofrer por três dias. Acho bom pensar assim. E estava aqui tentando me convencer disso, já que já se passaram sete dias. E nessa, tentando me convencer a seguir em frente, tenho ainda que lidar com o algoritmo me dizendo como trazer ele de volta em dez dias, como dar um chá de sumiço para ele correr atrás (tem e-book deste, inclusive), qual a mensagem exata que eu devo mandar para que ele se re-apaixone. Mas, ao que parece, este é só o começo. A coisa tá bem desenvolvida. Quando comecei a denunciar esses posts patrocinados como fraudulentos, começaram a aparecer coisas mais, poderia dizer, “elaboradas”, como por exemplo sobre como o chá de sumiço não funciona porque, afinal, “você quer que ele fique pelos motivos certos, certo?”. É quase como uma dialética sangrenta de venda que usa dessa nossa tão atual dificuldade de lidar com as frustrações da vida e da consequente busca por respostas prontas para coisas para as quais não há. O amor existe. Ele é bom. E ele, muitas vezes, dói. Não existem respostas fora. Não existem! Será que, nem no momento desta dor mais genuína, não podemos não comprar nada?

    Uma voz de alento de uma cara amiga vinda pelo direct (ah! como amo paradoxos) diz que as pessoas só fazem com a gente o que permitimos. E eu, com um tanto de fé em mim e na humanidade, adiciono que os algoritmos também