Categoria: Contra-cultura

Coluna Contra-cultura. Editor responsável: Arthur L. do Carmo

  • Como deixar morrer um bar que nunca existiu…

    Como deixar morrer um bar que nunca existiu…

    Por: Rodrigo G. M. Silvestre

    Vejo por todos os lados a comoção pelo fechamento do bar Kapele. Dizem que encerrou suas portas definitivamente, mergulhando Curitiba em um luto silencioso e profundo. Que há 51 anos, o bar clandestino foi o último refúgio de quem buscava vida, música e encontros autênticos; agora, apenas o vazio reverberante ocupa o lugar onde tantas noites se iniciaram e encerraram.

    Mas como se lá nunca existiu um bar? Se ao passar pela Saldanha Marinho, luzes apagadas, não existe letreiro, não existe sinal de vida… Dizem, que só os iniciados sabiam de sua existência, que até senha era preciso murmurar para a Senhora na porta, que à boca pequena chamavam de Mara. Eu mesmo nunca vi… nunca vi nenhuma senhora sentada em uma cadeira do lado da porta, cobertor no colo para conter o frio lancinante da noite gelada de Curitiba. Que diziam contrastar profundamente com o calor, a fumaça e o som alegre que existia dentro.

    Dizem que depois que Mara nos deixou, outra mulher incrível manteve seu legado. Mas como? não teríamos então ouvido falar dessa tal de Sil? Que pelo canto da porta controlaria o acesso de quem tinha ou não a honra de entrar no bar? Que mesmo autoridades, artista e magnatas, tinham que se colocar diante do escrutínio da esfinge? Certamente teríamos ouvido falar, haveriam registros, haveriam centenas de pessoas se manifestando nesse momento. Teria sido retumbado pelos quatro cantos do ciberespaço o mero risco de tal acontecimento.

    Dizem que no último dia de funcionamento, poucos testemunharam o apagar das luzes do Kapele. Mas como, se esse bar “do avesso”, nem mesmo existia. Como poderia ter fechado? Se nesse espaço que não poderia caber nem mesmo uma pequena loja, como poderia ter sido um dos mais longevos símbolos da boemia curitibana e cenário de incontáveis histórias que formaram a alma da cidade. Eu mesmo jamais frequentaria um bar assim, sempre tive muito medo de caminha pelas noites frias e escuras do centro de Curitiba, ainda mais na alta madrugada. Um verdadeiro desatino. Caso tivesse ido, certamente me lembraria… lembraria?

    Se por lá passaram pelas madrugadas muitos artistas, escritores, músicos e figuras anônimas, todos unidos pela cumplicidade do espaço clandestino e pela sensação de pertencimento. Porque então dizem que um tal Bardo Marinelli é que dominava a musica? Que em meio a dezenas de pessoas em um espaço que desafiava as leis das física de que dois corpos não podiam ocupar o mesmo lugar, trovava musica até além das três horas da manhã. Nem existem bares abertos em Curitiba as três da manhã… Um Marinelli assim seria conhecido, tocaria em outros bares, teria suas musicas cantadas por outros artistas e cantaria, ele também, o melhor de nossa cultura brasileira. Não, esse bar realmente nunca poderia ter existido.

    Se esse tal de Kapele não era apenas um estabelecimento; era palco de movimentos culturais, da liberdade em tempos sombrios, da amizade que resiste à passagem do tempo. Agora, o vazio deixado por suas portas fechadas representaria a ausência de noites improvisadas, conversas eternas e música de violão preenchendo a sala. Haveria, caso realmente tivessem cometido o disparate de deixá-lo fechar, um silêncio que ecoaria muito além das paredes: um vazio histórico que Curitiba jamais conseguiria preencher.

    Eu mesmo, se tivesse podido frequentar um bar assim, sentiria uma saudade pungente e a certeza de que o Kapele teria feito história justamente por desafiar convenções, acolher quem precisava de abrigo e marcar parte dos momentos mais sinceros da boemia curitibana. Sua ausência seria sentida não só por mim, nem só por seus frequentadores, mas por toda uma cidade que já saberia: jamais haveria outro como ele. Ainda bem que ele nunca existiu…?

  • Manifestações cada vez menores ocorrem pelo Brasil em defesa de Bolsonaro

    Manifestações cada vez menores ocorrem pelo Brasil em defesa de Bolsonaro

    Por: Rodrigo G. M. Silvestre

    As manifestações em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro neste domingo, 3 de agosto de 2025, voltaram a reunir milhares de pessoas em cidades de todo o país, com concentração principal na Avenida Paulista, em São Paulo. Apesar do esforço dos organizadores em descentralizar os protestos, a adesão mostra sinais claros de desgaste e um declínio contínuo no número de participantes, inclusive em redutos tipicamente bolsonaristas, como Curitiba (PR) e Santa Catarina.

    O ato na capital paulista reuniu, segundo o Monitor do Debate Político da USP, cerca de 37,6 mil pessoas — número que, mesmo superior ao do evento anterior no dia 29 de junho (12,4 mil), representa apenas uma fração da capacidade de mobilização vista em anos anteriores. Para efeito de comparação: em fevereiro de 2024, um evento semelhante levou mais de 180 mil apoiadores à Paulista. A tendência se repete em todas as partes do país: em Copacabana, no Rio de Janeiro, por exemplo, o ato de março deste ano atraiu 26 mil manifestantes, número bem abaixo dos 40 mil a 45 mil de abril de 2024123.

    Nas cidades do Sul, conhecidas pelo histórico conservador e grande apoio ao bolsonarismo, o cenário não foi diferente. Em Curitiba, embora organizadores tenham anunciado 15 mil pessoas, imagens do evento e relatos da imprensa local indicam uma concentração bem mais modesta do que em ocasiões anteriores, tomando parte de pontos tradicionais da capital, como a Rua XV de Novembro e a região da Boca Maldita. O movimento, batizado de “Reaja, Brasil”, reuniu os principais grupos de direita do estado, mas a empolgação foi restrita456. Em Santa Catarina, a presença de Carlos Bolsonaro em atos em Criciúma e Florianópolis buscou aquecer a militância, mas também evidenciou públicos menores, com o registro de participantes concentrados sobretudo nos entornos de trios-elétricos — longe do volume que já se viu em manifestações anteriores na região789.

    Além da pauta já conhecida — críticas ao Supremo Tribunal Federal, pedido de anistia a condenados pelo 8 de janeiro de 2023 e defesa de Donald Trump — o clima nos protestos foi de tentativa de manter a coesão do grupo em um cenário de incertezas quanto à presença física e ao futuro político do ex-presidente, que cumpriu medidas cautelares e apenas mandou mensagem virtual de apoio. Nos bastidores, inclusive, apoiadores lamentaram a ausência de lideranças de peso e governadores associados à direita — como Tarcísio de Freitas, de São Paulo, e Ratinho Junior, do Paraná — o que potencializou a sensação de esvaziamento10.

    Esse quadro reforça uma tendência de enfraquecimento da mobilização bolsonarista após anos de grandes protestos. Mesmo em cidades onde a direita mantém forte presença eleitoral, as manifestações dos últimos meses mostram públicos cada vez menores, dificultando tanto a pressão popular por suas pautas quanto o fortalecimento do ex-presidente como liderança de massas em um cenário político cada vez mais polarizado e judicializado21.

    1. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/poder360-ato-bolsonarista-na-paulista-reune-576-mil-usp-fala-em-376-mil/
    2. https://veja.abril.com.br/politica/ato-pro-bolsonaro-reune-milhares-no-pais-mas-engajamento-mostra-sinais-de-desgaste/
    3. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/08/03/no-apice-ato-pro-bolsonaro-na-av-paulista-reuniu-376-mil-pessoas-segundo-metodologia-da-usp.ghtml
    4. https://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/bolsonaristas-participam-de-ato-reaja-brasil-em-curitiba/
    5. https://bandnewsfmcuritiba.com/apoiadores-de-bolsonaro-participam-de-manifestacao-em-curitiba/
    6. https://www.instagram.com/p/DM5vH7OOe0Q/
    7. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/08/03/cotado-para-senado-por-sc-carlos-vai-a-ato-em-criciuma-e-florianopolis.htm
    8. https://www.nsctotal.com.br/noticias/apoiadores-de-bolsonaro-pedem-anistia-e-criticam-stf-em-manifestacoes-em-sc
    9. https://engeplus.com.br/noticia/politica/219737/movimento-reaja-brasil-realiza-ato-em-criciuma
    10. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/bolsonaristas-reclamam-de-ausencias-em-manifestacoes-da-oposicao/
    11. https://www.poder360.com.br/poder-brasil/sem-bolsonaro-ato-da-direita-reune-57-600-na-paulista/
    12. https://www.youtube.com/watch?v=wqoMO5xDbTQ
    13. https://jovempan.com.br/noticias/politica/manifestacao-pro-bolsonaro-na-avenida-paulista-tem-criticas-a-moraes-apoio-a-trump-e-discurso-de-nikolas.html
    14. https://www.gazetadopovo.com.br/republica/atos-por-impeachment-de-moraes-e-lula-mobilizam-oposicao-em-ao-menos-37-cidades/
    15. https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2025-08/ato-pro-bolsonaro-em-sao-paulo-1754253186
    16. https://www.youtube.com/watch?v=NGDDONmEvF8
    17. https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/08/03/atos-pro-bolsonaro-em-sp-rio-salvador-e-outras-cidades-pedem-anistia-e-tem-bandeiras-dos-eua-e-do-brasil.ghtml
    18. https://www.instagram.com/reel/DM5qHZZPJ53/
    19. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2025-08/ato-em-sao-paulo-pede-anistia-a-bolsonaro-e-exalta-trump
    20. https://www.instagram.com/reel/DM5vgVRuUWH/
  • STF manda claro recado à Trump e a clã Bolsonaro

    STF manda claro recado à Trump e a clã Bolsonaro

    Por: Rodrigo G. M. Silvestre

    Foto do Ministro Barroso na abertura da seção do STF
    Foto do Ministro Barroso na abertura da seção do STF

    O Supremo Tribunal Federal (STF) reabriu os trabalhos do Judiciário nesta sexta-feira, 1º de agosto de 2025, marcando o início do segundo semestre forense em meio a uma conjuntura de tensão diplomática e política envolvendo os Estados Unidos e o clã Bolsonaro. A sessão solene, comandada pelo presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, foi permeada por discursos enfáticos em defesa da democracia, da integridade institucional e do papel da verdade no debate público12.

    Durante sua fala, Barroso reforçou o compromisso do STF com a Constituição e repudiou estratégias políticas apoiadas em desinformação, num contexto em que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi alvo de novas medidas cautelares impostas pelo ministro Alexandre de Moraes, incluindo o uso de tornozeleira eletrônica. O gesto foi interpretado por membros da oposição como um recado direto ao ex-presidente norte-americano Donald Trump, que recentemente intensificou críticas à Justiça brasileira e anunciou um tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros em resposta ao processo que envolve Bolsonaro345.

    Sem citar nomes, Barroso destacou que “mentir não pode ser estratégia política”, num claro endereçamento às recentes iniciativas tanto de Trump quanto de figuras ligadas ao bolsonarismo, que buscaram apoio internacional para contestar decisões judiciais no Brasil. O ministro enfatizou que “deveríamos fazer com que mentir seja errado de novo”, ressaltando que a Corte está pautada unicamente pelo ordenamento jurídico e não por pressões externas, sejam diplomáticas ou midiáticas46.

    O contexto internacional agravou-se após o governo dos Estados Unidos, liderado por Trump, impor sanções inéditas contra integrantes do Judiciário brasileiro, especificamente Alexandre de Moraes, sob alegações de supostos excessos em processos envolvendo Bolsonaro e aliados. Analistas interpretam que o STF respondeu em tom institucional ao ocupar a tribuna e reafirmar sua autonomia, deixando claro que intervenções externas não modificarão os rumos dos processos em curso, considerados centrais para a defesa do Estado democrático de direito357.

    Enquanto aliados de Bolsonaro e parte da direita veem nas decisões do STF uma reação política destinada a “amordaçar e amedrontar a direita”, Barroso fez questão de construir um discurso em defesa das instituições, da verdade factual e do respeito aos limites constitucionais, mandando um sinal à comunidade internacional e, especialmente, a Donald Trump e ao clã Bolsonaro: a Justiça brasileira não se submete a ameaças ou pressões, e seu compromisso permanece com a Constituição e a democracia brasileira345.

    1. https://www.otempo.com.br/politica/judiciario/2025/8/1/stf-retoma-trabalhos-com-expectativa-de-discursos-de-moraes-e-outros-ministros-em-resposta-a-trump
    2. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-realiza-sessao-de-abertura-do-segundo-semestre-nesta-sexta-feira-1o/
    3. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/oposicao-avalia-que-decisao-de-moraes-torna-tarifaco-dificil-de-reverter/
    4. https://cbn.globo.com/politica/noticia/2025/07/28/barroso-diz-que-mentir-nao-pode-ser-estrategia-politica.ghtml
    5. https://www.youtube.com/watch?v=Ql-DUWMBJyI
    6. https://luisrobertobarroso.com.br
    7. https://www.poder360.com.br/poder-internacional/ataque-de-trump-ao-brasil-pode-sair-pela-culatra-diz-the-economist/
    8. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/paginas/comunicacao/noticias/2025/01082025-corte-especial-abre-segundo-semestre-forense-com-sessao-nesta-sexta-feira–1o—as-14h.aspx
    9. https://www.youtube.com/watch?v=uy1jnyP5FMA
    10. https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2025/Julho/tse-abre-2o-semestre-forense-de-2025-nesta-sexta-feira-1o
    11. https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2025/Agosto/prazos-processuais-no-tse-voltam-a-tramitar-normalmente
    12. https://www.youtube.com/watch?v=n5Ie_MEyvxw
    13. https://www.poder360.com.br/poder-justica/ao-vivo-stf-realiza-abertura-do-2o-semestre-do-poder-judiciario/
    14. https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/08/01/stf-volta-aos-trabalhos-nesta-sexta-com-expectativa-de-falas-em-defesa-a-moraes.ghtml
    15. https://www.youtube.com/watch?v=WvSKkyT2kww
    16. https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/lula-sobe-tom-contra-tarifaco-de-trump-e-manda-recado-afiado-ao-presidente/
    17. https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaMinistro&pagina=LuisRobertoBarrosoDiscursos
    18. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/secretario-de-trump-alfineta-moraes-sancoes/
    19. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/presidente-do-stf-fala-sobre-revolucao-digital-em-evento-sobre-direito-publico/
    20. https://www.youtube.com/watch?v=jX_UHXr5ys8
  • Copa do Mundo Feminina

    Por  Desiree Salgado

    Nona coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado

  • Mães e pais de rua são separados de crianças após parto em Curitiba

    Mães e pais de rua são separados de crianças após parto em Curitiba

    Republicado em parceria com: Agência de Noticias das Favelas – ANF

    Foto destacada: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

    Magra, vestindo roupas largas e evitando ruas movimentadas, mal dá para perceber que Viviane Nascimento Araújo, de 31 anos, está no oitavo mês de gravidez. Em sua terceira gestação nas ruas, ela se esconde do julgamento de quem passa e, principalmente, das equipes do Conselho Tutelar. Seu primeiro parto aconteceu no dia 14 novembro 2007, em Curitiba.

    “Tive meu primeiro filho com 16 anos. O Gabriel nasceu saudável, tive ele em um hospital público no centro da cidade, foi parto normal. Eu vi na incubadora, ele segurou meu dedinho e sorriu. A assistente social e a enfermeira disseram para eu chamar a minha família e voltar no mesmo dia, para amamentar. Voltei poucas horas depois, meu menino não estava mais lá”, conta Viviane, com lágrimas nos olhos.

    Aos 14 anos, ela já morava nas ruas. Órfã de mãe, enfrentava violência sexual e doméstica do tio, alcoólatra, que agredia sua tia e as próprias filhas. Viviane passou um ano transitando entre terminais de ônibus e o centro de Curitiba. Eventualmente, passava pela triagem das equipes de assistência social, mas, mesmo sendo adolescente, nunca foi encaminhada para um abrigo.

    Aos 15 anos, conheceu a cocaína e o crack e se tornou dependente química. Uma no depois, conheceu Marcos Alceu, de 48 anos, também morador de rua e dependente químico, de quem engravidou pela primeira vez.

    “Marcos me acompanhou durante toda a gravidez, ele é alcoólatra, mas não é violento, teria sido um bom pai. Quando dei entrada no hospital, não deixaram ele me acompanhar, por ser morador de rua”, relata Viviane.

    Viviane saiu da maternidade 24 horas após dar à luz, em busca do seu companheiro, para levarem o filho para casa da sogra e começar uma nova vida. Mas, ao voltarem ao hospital, em menos de três horas, o Conselho Tutelar havia levado Gabriel para o acolhimento. Viviane e Marcus nunca mais tiveram qualquer informação sobre a criança.

    Falta de dados e invisibilidade da população de rua

    Em Curitiba, mendigos e moradores de rua incomodam moradores e comerciantes  | Tribuna PR - Paraná Online
    Foto: Gerson Klaina

    De acordo com dados de julho de 2022 do Cadastro Único do governo federal, Curitiba é a capital do Sul do país com mais gente em situação de rua. São 3.087 pessoas registradas. Mas as autoridades reconhecem que esse é número subnotificado pela dificuldade de acessar e realizar a inscrição no Cadastro.

    A assessora jurídica do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM), da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), Camila Mafioletti Daltoé, aponta a dificuldade em obter dados reais sobre a população em situação rua.

    Diante disso, surgem algumas iniciativas, como o Grupo Mães de Rua. Ele une a Defensoria Pública do Paraná, a Rede de Proteção da Infância, profissionais da área da saúde que atuam no Consultório na Rua, além de movimentos socais e do terceiro setor, como a ONG Mãos Invisíveis, INRUA. Inclui também profissionais da prefeitura.

    Grupo Mães de Rua busca evitar o acolhimento institucional de recém-nascidos de mulheres em situação de rua e usuárias de substâncias psicoativas, com atuação nas regionais Boa VistaMatrizCajuru e Portão.

    “Não há um mapeamento de quem são essas mulheres, onde elas estão, quais as dificuldades enfrentadas por elas, o que os serviços públicos oferecem para a essa população. Estamos em contato com diferentes instituições que atuam com população em situação de rua para conseguirmos transpor as barreiras da falta de políticas públicas, a mesma falta de políticas que resultem na negação da maternidade para essas mulheres”, afirma Camila.

    União em defesa das mães

    Tamíres Oliveira, assistente Social do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) da Defensoria Pública do Paraná também integra o Grupo Mães da Rua e explica que casos como o de Viviane e Marcos são comuns.

    “Muitos casos chegam à Defensoria Pública sem que a mãe tenha qualquer informação sobre o processo. A equipe que notificou o Conselho Tutelar, o Ministério Público e todos os outros agentes citados no processo não repassaram qualquer informação à família”.

    Tamíres afirma que, em Curitiba, não há políticas de amparo para essas famílias e que o atendimento pelos serviços públicos pode causar medo às gestantes.

    “Não há uma casa da gestante, ou casas de passagens que acolham casais. E o fato da gestante estar em uma casa de passagem é visto como negativo, como se a mãe não tivesse a capacidade protetiva para criança. Mas como a mãe que está sendo protegida pelo Estado nas casas de passagem é vista como ameaça? Não faz sentido esse olhar punitivo e conservador”, afirma Tamíris.

    Ainda segundo as integrantes do Grupo Mães da Rua, não há uma solução pronta para o problema. É preciso de um trabalho de combate à desproteção social e a efetivação de políticas públicas integradas e efetivas.

    Campinas tem uma casa de acolhimento para gestantes em situação de rua, existem situações de êxito e respeito para maternidade dessas mulheres. Precisamos romper com o olhar conservador e cumprir o papel do Estado em proteger essa população”, afirma Camila.

    A luta diária pelo direito de ser mãe na rua

    Pandemia faz crescer número de moradores de rua em Curitiba e muitos deles esperam pela chance de dar a volta por cima.
    Foto: Arquivo/Marcelo Elias/Gazeta do Povo.

    Em frente ao terminal de ônibus do Guadalupe e ao lado da Igreja de mesmo nome, Isabel Cristina Lopes aguarda seu filho chegar da escola. Não citaremos seu nome, mas ele tem quatro anos e estuda em um dos Centro Municipais de Educação Infantil (CMEI) do centro de Curitiba. Seu pai, Josimar Silva, leva e busca Bruno todos os dias na escola.

    “Já me denunciaram na escola por eu ser sem teto, chamaram o Conselho Tutelar, mas eu e o Josimar sempre dormimos em lugares diferentes, não ficamos nos mesmos espaços, não vão levar meu filho”, afirma Isabel.

    Bruno é o segundo filho de Isabel e o quinto de Josimar. Isabel também é mãe de Maria Aparecida de Jesus, que nasceu me 2011 também em Curitiba. Josimar tem quatro filhos dos quais não possui a guarda.

    Isabel se separou de sua filha com menos de seis meses de idade, quando a justiça determinou que ela não apresentava condições de exercer a maternidade e sua filha foi encaminhada para uma casa de acolhimento de crianças e adolescentes.

    Dois dos filhos de Josimar moraram com os avós até os oito e seis anos, quando também foram acolhidos pela Justiça e logo foram destituídos do poder familiar e seguiram para adoção. Seus outros filhos, nascidos 2018 e 2020 vivem com a irmã de Josimar, que os visita aos finais de semana.

    Em seu primeiro parto, Isabel sofria de dependência química e foi encaminhada, junto com a filha, para um centro de reabilitação. Mas, assim que terminou a estadia determinada pela Justiça Estadual, sua filha foi encaminhada para o acolhimento institucional e Isabel e nunca mais teve notícias.

    Destituição está prevista no ECA

    De acordo com a advogada Bruna Bhal Emiter, essas decisões de acolhimento e destituição seguem o artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que institui que na falta de recursos materiais, a família deve ser encaminhada a serviços e programas oficiais de proteção e apoio.

    De acordo com Bruna, o sistema judiciário identifica a falta de consultas médicas, sintomas de abstinência, e vícios são usados como elementos que justificam a retirada da criança da mãe.

    “Infelizmente, a Justiça pune as mães, pais, famílias com decisões punitivistas e preconceituosas. Não é oferecido para essa mãe a maternagem, as condições são apenas para punir. Há pouco esforço em procurar a extensão familiar ou sequer procurar o pai. É todo um sistema para punir mulheres e crianças”, afirma a advogada.

    Depois de experiências tão ruins, Isabel e Josimar não confiam nos serviços de atendimento à população de rua. Evitam postos de saúde e até mesmo o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI)

    “Lá eles não sabem ainda que moramos na rua. Todo o dia eu recolho meu colchão, minhas coisas, e mudo de lugar. Eu e meu filho tomamos banho em uma pastelaria que me cede o banheiro. Logo iremos para uma ocupação, começar a nossa vida, mas por enquanto é isso. Eu tenho medo da professora querer tirar ele de mim”, preocupa-se Isabel.

    Eu nunca abandonei

    Eu nem sei como é o rosto dele. Rezo todos os dias para que Gabriel esteja bem e seja amado como eu o amo, mesmo sem conhecer. Eu acredito que Deus deu um lar com amor para ele”, diz Viviane.

    “Às vezes eu ando nas ruas olhando para as meninas da idade de Maria Aparecida. Ela tem 12 anos. Olho todas as meninas mesmo, as dentro do ônibus, de escola particular, de rua, eu vejo se é meio parecida. Eu quero encontrar ela, nem que seja para dizer que eu nunca a abandonei, que eu sou a mãe dela”, afirma Isabel, em lágrimas.

    A história de Viviane, Isabel e de tantas outras mulheres convive diariamente com a saudade, a dor e a incerteza sobre como e onde estão seus filhos. Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem quase 34 mil crianças e adolescentes abrigadas em casas de acolhimento e instituições públicas por todo país.

    Destas, 5.040 estão totalmente prontas para a adoção, sendo 1.203 crianças encaminhadas para adoção por destituição familiar.

    Conselho Tutelar explica procedimentos

    Claudia de Lara, coordenadora do Conselho Tutelar de Curitiba explica que quando recebem notificação de gravidez ou sobre crianças em situação de rua, o primeiro passo é acionar a rede de proteção à infância, realizar a busca ativa por familiares e buscar a amparo da pessoa gestante. Somente quando são esgotadas todas essas alternativas, começa o processo de destituição familiar.

    A destituição familiar é o processo legal em que a autoridade competente decide retirar a guarda de uma criança de seus pais ou responsáveis devido a situações de abuso, negligência grave ou outras circunstâncias que coloquem a criança em risco.

    destituição familiar ocorre quando é determinado que o ambiente familiar não é seguro ou adequado para o bem-estar da criança. A decisão é tomada visando proteger seu interesse, garantir segurança e desenvolvimento saudável.

    Já o acolhimento é uma medida de proteção que busca oferecer um ambiente temporário para crianças que foram removidas de suas famílias devido a situações de risco. O acolhimento pode ocorrer em instituições especializadas, como abrigos ou lares substitutos, onde as crianças recebem cuidados, apoio emocional e a oportunidade de desenvolver-se em um ambiente estável enquanto as circunstâncias familiares são avaliadas.

    destituição familiar envolve a perda da guarda da criança pelos pais ou responsáveis legais. O acolhimento é uma medida temporária. O objetivo final é sempre buscar a reunificação familiar quando for possível e seguro para a criança, ou, quando necessário, encontrar uma família adotiva.

    Por: Raíssa Melo
    @rsm_raissa

  • Uma centelha de esperança: a semente deixada pelo 31º Festival de Curitiba

    Por Carla Françoia e Felipe Mongruel

    Foto: Tiggaz

     

    Na manhã de 10 de abril de 2023, Curitiba amanheceu plúmbea como muitas vezes costuma amanhecer. Ergueu-se na atmosfera uma certa órbita de um amargo de desligamento; uma separação forçada; um adeus. Era o momento da despedida que chegava à cidade. O cinza do céu levava embora, além das dezenas de trupes, trabalhadores, colaboradores, organizadores e curadores, uma centelha de esperança e otimismo que o 31º Festival de Curitiba em suas duas semanas nos deu. Foi o maior, o mais belo de todos os tempos. O mais inclusivo. O mais especial. O mais ousado. Finalmente, Curitiba teve um Festival para chamar de seu.

    Foto: Annelize Tozetto

    Se na primeira semana do Festival vimos que a Cultura é o instrumento necessário e capaz de apagar a fuligem de dois anos de pandemia e de um governo que tinha a necropolítica como arma de Estado, como já dito na coluna da primeira semana (Do Horror à Vida: a marca do 31º Festival de Curitiba- https://www.cultura930.com.br/do-horror-a-vida-a-marca-do-31o-festival-de-curitiba/), na segunda e última semana do Festival, não foi diferente. Ele trouxe provocações de todas as espécies à “capital do golpe”, nos fez depararmo-nos com cortes viscerais a nossa essência social, política e antropológica. Porque todo o poder inquietante e provocador da Cultura – um poder que é invisível pois é um poder que chama por transformações – nos levou a olharmos para nós mesmos e para o mundo ao nosso redor e a clamar por mudanças essenciais e necessárias à vida coletiva. Melhor dizendo, a marca da segunda semana de Festival colocou o dedo numa ferida dolorida para a nossa sociedade: encontrar meios para combater um outro poder invisível, que infelizmente, ainda ocupa um lugar de destaque: O fascismo.

    O Fascismo não está escondido, às vezes passa o almoço de Páscoa com você, ou mora no apartamento alugado ao lado, divide a mesma calçada, come nos mesmos restaurantes ou vai nos mesmos parques. Ele está na sua família, no seu lazer, no seu trabalho. Ele está em todos os lugares. É uma construção semântica de diversos meios para atingir fins determinados. Ele é espaçoso, amorfo e destrutivo. Já a cultura, essa é expansiva, é ilimitada, é irrefreável e é fértil. Engana-se quem pensa aí do outro lado que estamos falando pelo lado do entretenimento que a cultura tem – Isso também existe, é claro – é do aspecto libertário, libertador e libertino que ela carrega que nos faz alçar olhares para longe, para lugares nunca vistos. A cultura não é só diversão para poucos na classe media, ela é grito daqueles que estão excluídos, a margem da sociedade que os mantém lá como forma de elimina-los. A obra do fascismo, diferente, exclui para eliminar.

    Foto: José Luiz Pederneiras

    Isso foi visto na peça “Cárcere ou Porque as Mulheres viram Búfalos” da Companhia de Teatro Heliópolis que mostra mulheres periféricas lutando pela centralidade da sua existência. Ou como bem mostrado com a peça “Um Tartufo” da Cia do Esplendor do Rio de Janeiro de adaptação do diretor Bruce Gomlevsky. Da obra originária do século XVII, de Molliere, tiramos uma surpresa edificante: o mesmo mal populista dos pregadores do Divino ultrapassa séculos. E isso aconteceu não só pelo figurino baseado no expressionismo alemão dos seus personagens, não só pela construção de quase 100 minutos de peça em que todo o diálogo se apresentou pela ocupação dos corpos em cena sem que a linguagem oral estivesse presente e não só, pelo fim arrebatador dado pelo diretor, que mostra uma realidade da qual queremos e devemos nos livrar: figuras messiânicas e ditatoriais com discursos autoritários e eugenistas não tem e não terão vez e voz no nosso país. Ou pelo leveza dos corpos que se entrelaçam na doçura das cores da primavera, ou no contraste do preto e branco do breu como dançou o Grupo Corpo fechando o Festival sendo ovacionado pela plateia embriagada de êxtase pelo espectáculo apresentado.

    Foto: Tiggaz

    Seja lá o que for, Curitiba presenciou a vida nua e crua exposta pela arte nestas duas semanas de Festival. Ela foi chacoalhada por verdades que tentamos esconder, mas que não é mais possível porque pulsa a urgência em fazer diferente, em fazer melhor, em fazer mais, sempre.

    Como nem tudo são flores, é dever de informação comunicar aos quatro cantos e em alto e bom tom que a Prefeitura e a Fundação Cultural de Curitiba – FCC – não colaboraram financeiramente com o Festival. Decerto que não seremos irresponsáveis em não lembrar que foram diponibilizados palcos públicos para as apresentações principalmente do Fringe ou da Casa Hoffmann na Mostra Lucia Camargo. Funcionários públicos municipais foram acionados para a limpeza e segurança dos locais. Agora, convenhamos que é muito pouco para uma cidade que se arvora em dizer ser a mais inteligente (leia-se: smartcity) do país, ou que detém buquês europeus no seu estereótipo, para um evento de mais de oito milhões de reais. Este encargo ficou dividido entre os patrocínios conquistados pela organização e a outra parte pela adesão da população curitibana, que maciçamente juntou-se aos turistas que vieram para prestigiar os espetáculos. Fica aqui nosso puxão de orelha ao “mega intelectual” prefeito da cidade que, aliás, não foi visto valorizando e aproveitando o Festival, tampouco transitando pelos teatros da cidade. Fica aqui a nossa pergunta pelo paradeiro do prefeito durante os 13 dias.

    Foto: José Luiz Pederneiras

    Por último, não podemos deixar de destacar o maior resultado do Festival: as sementes lançadas ao solo fértil da capital dos pinheirais. Àquela centelha de esperança e otimismo, sem dúvida alguma, fez brotar uma rosa de união e esperança para o próximo ano. A flecha lançada da inclusão e da diversidade, da participação e da colaboração, da lágrima e do aplauso, fez resistir um corpo orgânico vivo, forte e maduro entre palco e plateia. E que, no baile da vida, enaltece os grandes artistas do mundo: os trabalhadores.

    Que venha logo o 32º festival cheio das mesmas emoções, temperando os dias plúmbeos com grandes encontros e grandes escolhas, para, quem sabe, a gente sorrir orgulhosamente desta terra, como a República do Teatro no Brasil.

     

    Autores:

    Felipe Mongruel é especialista em Ética pela PUCPR, foi advogado da Vigília Lula Livre, liderou o coletivo que ia semanalmente durante 14 meses em frente ao MPF cobrar explicações dos procuradores da força tarefa Lavajato, foi professor de filosofia, apresenta o programa Vamos à Luta e é um dos diretores do Jornal América Profunda.

    Carla Françoia é psicóloga, psicanalista, palestrante, Doutora em Filosofia e pesquisadora em Gênero e Sexualidade.

  • VIAJE

    POR: Nilson Monteiro

    (crônica a Neruda)

     

    Onde andas, poeta, como fantasma

    grunhindo as tábuas do convés?

     

    Onde passeias, leve, pipa entre as cores

    dos varais e das casas penduradas nas escarpas?

     

    Onde choras, líquido, em meio

    às ondas largas e geladas do Pacífico?

     

    Onde, plantas, mágico, teu coração

    nas pedras, gelatinas de ostras endurecidas?

     

    Onde, esfarinhas, versejador, tua alma

    em estrelas, uvas bêbadas, cafés franceses?

     

    Onde, fincas, amante, as âncoras

    na vida, feira livre, de teu povo?

     

    Onde, espalhas, boiadeiro, as crinas

    de teus cavalos, relinchos selvagens?

     

    Onde, anjo, sem alas, sem religião,

    feito de renda branca da cordilheira,

    tateias a pele desses muros?

     

     

    Aqui, poeta,

    aqui entre livros, mapas, bússolas, bananeiras

    cerâmicas

    e escadas,

    as pessoas te chamam neste inferno de paixões

    de anjo

     

     

    Nesta cidade feita de ruelas,

    peles, ondas, vinho, fumaça,

    bodegas, teias, dores,

    empanadas, penhascos que arranham o céu,

    choclo e palta nos beiços dos pratos,

    pisco e pinga nos copos,

    funiculares ensandecidos

     

    Descubro, num átimo, que amo

    o atômico explodir da vida,

    pedaços de gente esparramados

    ao pé do cerro

    sortidos em meio ao sebo do porto,

    sentimentos espalhados sem cercas

     

    Descubro que amo

    cada arrulho de seus colegiais,

    meias de lã, gravatas inglesas

    achadas no passado,

    maritacas de azul

    gritando alegrias e mirando futuros

    nas rachaduras da arquitetura

     

    Descubro que amo

    cada lágrima que desce

    nas fendas molhadas da montanha,

    vidro, cristal safira que fura os olhos

    para embrulhar-se nos lençóis do Pacífico

     

    Descubro que amo

    cada suspiro de teu ar,

    o cheiro pastoso de teu mercado,

    cada célula de teus mariscos,

    cada ensaio de vôo

    de teus copos suados

     

    Descubro que amo

    cada farelo de tuas pedras

    cada dor de seu paraíso

    cada ritmo de teus versos

    cada sentimento de entranhas,

    das putas e das guitarras,

    de ventanas, de pinturas

    em paredes sem casca

     

    Onde, poeta, é permitido sonhar

    com este prelúdio salgado

    desta sinfonia doce que

    deram o nome de Neruda?

     

    Aqui,

    neste chão agarrado em Valparaíso,

    madeira de porão do mar

    tua casa de degraus

    de mastros eriçados,

    La Sebastiana.

     

    Nilson Monteiro é jornalista, poeta e escritor. Fundador e Membro Honorário da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina e ocupa a cadeira 28 da Academia Paranaense de Letras.

  • VIAGEM

    POR: Nilson Monteiro

    (crônica a Neruda)

     

    Onde andas, poeta, como fantasma

    grunhindo as tábuas do convés?

     

    Onde passeias, leve, pipa entre as cores

    dos varais e das casas penduradas nas escarpas?

     

    Onde choras, líquido, em meio

    às ondas largas e geladas do Pacífico?

     

    Onde, plantas, mágico, teu coração

    nas pedras, gelatinas de ostras endurecidas?

     

    Onde, esfarinhas, versejador, tua alma

    em estrelas, uvas bêbadas, cafés franceses?

     

    Onde, fincas, amante, as âncoras

    na vida, feira livre, de teu povo?

     

    Onde, espalhas, boiadeiro, as crinas

    de teus cavalos, relinchos selvagens?

     

    Onde, anjo, sem alas, sem religião,

    feito de renda branca da cordilheira,

    tateias a pele desses muros?

     

     

    Aqui, poeta,

    aqui entre livros, mapas, bússolas, bananeiras

    cerâmicas

    e escadas,

    as pessoas te chamam neste inferno de paixões

    de anjo

     

     

    Nesta cidade feita de ruelas,

    peles, ondas, vinho, fumaça,

    bodegas, teias, dores,

    empanadas, penhascos que arranham o céu,

    choclo e palta nos beiços dos pratos,

    pisco e pinga nos copos,

    funiculares ensandecidos

     

    Descubro, num átimo, que amo

    o atômico explodir da vida,

    pedaços de gente esparramados

    ao pé do cerro

    sortidos em meio ao sebo do porto,

    sentimentos espalhados sem cercas

     

    Descubro que amo

    cada arrulho de seus colegiais,

    meias de lã, gravatas inglesas

    achadas no passado,

    maritacas de azul

    gritando alegrias e mirando futuros

    nas rachaduras da arquitetura

     

    Descubro que amo

    cada lágrima que desce

    nas fendas molhadas da montanha,

    vidro, cristal safira que fura os olhos

    para embrulhar-se nos lençóis do Pacífico

     

    Descubro que amo

    cada suspiro de teu ar,

    o cheiro pastoso de teu mercado,

    cada célula de teus mariscos,

    cada ensaio de vôo

    de teus copos suados

     

    Descubro que amo

    cada farelo de tuas pedras

    cada dor de seu paraíso

    cada ritmo de teus versos

    cada sentimento de entranhas,

    das putas e das guitarras,

    de ventanas, de pinturas

    em paredes sem casca

     

    Onde, poeta, é permitido sonhar

    com este prelúdio salgado

    desta sinfonia doce que

    deram o nome de Neruda?

     

    Aqui,

    neste chão agarrado em Valparaíso,

    madeira de porão do mar

    tua casa de degraus

    de mastros eriçados,

    La Sebastiana.

     

    Nilson Monteiro é jornalista, poeta e escritor. Fundador e Membro Honorário da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina e ocupa a cadeira 28 da Academia Paranaense de Letras.