VIAGEM

POR: Nilson Monteiro

(crônica a Neruda)

 

Onde andas, poeta, como fantasma

grunhindo as tábuas do convés?

 

Onde passeias, leve, pipa entre as cores

dos varais e das casas penduradas nas escarpas?

 

Onde choras, líquido, em meio

às ondas largas e geladas do Pacífico?

 

Onde, plantas, mágico, teu coração

nas pedras, gelatinas de ostras endurecidas?

 

Onde, esfarinhas, versejador, tua alma

em estrelas, uvas bêbadas, cafés franceses?

 

Onde, fincas, amante, as âncoras

na vida, feira livre, de teu povo?

 

Onde, espalhas, boiadeiro, as crinas

de teus cavalos, relinchos selvagens?

 

Onde, anjo, sem alas, sem religião,

feito de renda branca da cordilheira,

tateias a pele desses muros?

 

 

Aqui, poeta,

aqui entre livros, mapas, bússolas, bananeiras

cerâmicas

e escadas,

as pessoas te chamam neste inferno de paixões

de anjo

 

 

Nesta cidade feita de ruelas,

peles, ondas, vinho, fumaça,

bodegas, teias, dores,

empanadas, penhascos que arranham o céu,

choclo e palta nos beiços dos pratos,

pisco e pinga nos copos,

funiculares ensandecidos

 

Descubro, num átimo, que amo

o atômico explodir da vida,

pedaços de gente esparramados

ao pé do cerro

sortidos em meio ao sebo do porto,

sentimentos espalhados sem cercas

 

Descubro que amo

cada arrulho de seus colegiais,

meias de lã, gravatas inglesas

achadas no passado,

maritacas de azul

gritando alegrias e mirando futuros

nas rachaduras da arquitetura

 

Descubro que amo

cada lágrima que desce

nas fendas molhadas da montanha,

vidro, cristal safira que fura os olhos

para embrulhar-se nos lençóis do Pacífico

 

Descubro que amo

cada suspiro de teu ar,

o cheiro pastoso de teu mercado,

cada célula de teus mariscos,

cada ensaio de vôo

de teus copos suados

 

Descubro que amo

cada farelo de tuas pedras

cada dor de seu paraíso

cada ritmo de teus versos

cada sentimento de entranhas,

das putas e das guitarras,

de ventanas, de pinturas

em paredes sem casca

 

Onde, poeta, é permitido sonhar

com este prelúdio salgado

desta sinfonia doce que

deram o nome de Neruda?

 

Aqui,

neste chão agarrado em Valparaíso,

madeira de porão do mar

tua casa de degraus

de mastros eriçados,

La Sebastiana.

 

Nilson Monteiro é jornalista, poeta e escritor. Fundador e Membro Honorário da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina e ocupa a cadeira 28 da Academia Paranaense de Letras.

 

 

 

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