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O punitivismo do bem: como a esquerda se perde na segurança pública

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Por: Willian Carneiro Bianeck
A esquerda sempre teve uma relação tóxica com a pauta da segurança pública. De um lado, há o consenso de que a polícia ainda é a principal forma de promoção de políticas na área, sendo, portanto, muito bem-vinda a crítica direcionada a todos os problemas que acompanham a instituição: violência arbitrária, seletividade racial, milicialização etc. De outro, persiste a percepção de que os problemas de segurança serão resolvidos automaticamente com o devido e necessário enfrentamento das consequências de um sistema capitalista, como num passe de mágica. É mentirosa a ideia de que, numa sociedade além do Capital, não haveria violência e todos os seres humanos viveriam em plena paz e harmonia, sem quaisquer contradições.
Há ainda uma parcela da esquerda que abraça totalmente um “punitivismo do bem”, endossando a criminalização de condutas relacionadas à suposta proteção de populações vulneráveis por meio da punição estatal. Como se houvesse uma punição de fato boa para a sociedade, ignorando por completo o fato de que os criminalizados são uma minoria que é legitimamente humilhada por todos, indiscriminadamente. A lógica é simples: violou o direito de grupos estigmatizados? Vamos violentamente transformá-lo numa minoria também, que é a população em situação prisional. E assim vamos amargando e inflando cada vez mais o terceiro lugar entre os países que mais prendem pessoas no mundo. A meta é ser vanguarda na área, pelo jeito.
Essa lógica amplia o poder e o alcance do mesmo sistema penal que a esquerda critica quando ele prende um jovem negro por furto. Acreditam, ingenuamente, que o Estado penal será “gentil” ou “seletivo para o bem”. A “boa vítima” (a que é protegida por lei) justifica a criação do “novo culpado”, que é então jogado nas engrenagens do mesmo sistema carcerário desumano. Ignora-se que os “criminalizados” muitas vezes também são oriundos de grupos vulneráveis, num ciclo perverso de violência. É mais fácil e dá mais ibope político criminalizar um comportamento do que enfrentar as causas estruturais da LGBTfobia ou do machismo, que passam por educação, cultura, redistribuição de renda e transformação social profunda. É uma solução rápida, midiática e superficial para um problema complexo.
A população mais vulnerável vivencia as violências que a esquerda não quer enfrentar de fato. O dono da padaria da periferia que sofre roubos de seus vizinhos; a dona de casa que vê seu filho sendo ameaçado pelo traficante da região; a prostituta que se sujeita ao cafetão para conseguir a proteção que o Estado não dá. São apenas alguns exemplos canônicos que ignoramos quando nos esquivamos de um debate sério sobre a violência real do nosso dia a dia.
Há uma violência horizontal, comunitária e do crime organizado que é tão real e avassaladora quanto a violência de Estado. Ignorar isso por medo de parecer “defensor da polícia” ou “alarmista” é um desserviço às próprias populações que a esquerda diz defender. É preciso romper com essa dicotomia tola. É perfeitamente possível e necessário combater a violência policial e a violência do crime comum. São duas faces da mesma moeda de insegurança e falência do Estado Social.
Há um bom tempo defendo que precisamos entender a política de segurança pública como algo fundamental para uma política de Estado de esquerda, de modo a não focar apenas em metas futuras e punitivismos de ocasião, mas principalmente compreender as dinâmicas e as realidades das pessoas que mais sentem na pele as truculências, não só as do Estado. Só que isso não implica brigar pelo incremento da legislação punitiva, que já é assustadoramente inflada.
A crítica às instituições do sistema penal e seus atores não deve ser descartada; pelo contrário, deve ser sofisticada. Para tanto, uma política criminal de prevenção para além da punição é fundamental. Contudo, infelizmente, a prisão se mostra uma solução predileta, embora ineficaz. E a esquerda não pode se dar ao luxo de se seduzir por essa saída conservadora: há toda uma gama de formas de se pensar a segurança pública, como, por exemplo, formas comunitárias de resolução de conflitos por meio da não violência, da mesma forma que existem possibilidades de se evitar crimes que não sejam por meio do policiamento ostensivo. Uma política criminal séria envolve revisar a lista de condutas criminalizadas, e não aumentá-la como se número de crimes significasse uma sociedade mais segura. Esses são alguns caminhos a serem pensados.
A esquerda não pode mais se dar ao luxo de ser apenas a crítica do sistema penal. É essencial a construção de uma alternativa viável, que enfrente simultaneamente a violência do Estado e a violência que aflige o cotidiano dos mais pobres. Isso exige abandonar o “punitivismo do bem”, superar o messianismo revolucionário e mergulhar na complexidade do problema com ferramentas inovadoras. A segurança pública é, antes de tudo, um direito social. E é como tal, como uma política de cuidado e não de guerra, que a esquerda deve finalmente abraçá-la.

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