Era uma vez, muito tempo atrás, uma pequena subsidiária de uma das maiores empresas do mundo. Em certo momento, seu presidente achou melhor fazer uma cisão com a holding. Segundo muitos economistas, foi quando os problemas de gestão se tornaram aparentes.

Mas isso foi há muito tempo. Depois de passar pelo modelo de conselho majoritário, sempre alinhada com outras corporações, a firma passou a ter votação direta: o CEO é escolhido por votação entre todos os funcionários. Mas mesmo que quase todos concordassem e gostassem desse sistema, em certas épocas surgiam perturbações que causavam mudanças no modelo de gestão.

Em uma certa época, uma “panelinha” do setor da segurança colocou, contra todas as regras de compliance da época, um CEO escolhido apenas entre eles, que destituiu a diretoria anterior. Vários daqueles seguranças andavam armados e tinham formas pouco republicanas para resolver problemas. Assim, pressionados, o jurídico e o conselho de administração tiveram que ratificar o “golpe” e a diretoria nova passou a gerir a empresa. O dono do revólver sempre tem razão, diziam eles.

E foi assim que o setor de segurança assumiu a presidência por muitos anos. Obviamente deu errado: a gestão da empresa passou a ignorar regras básicas de compliance (que mesmo na época não eram nenhum segredo), e usar rotineiramente os seguranças da empresa para intimidar quaisquer funcionários que exigissem direitos básicos ou reclamassem de malfeitos.

Se tivessem continuado só fazendo aquilo, talvez estariam na presidência até agora. Mas esses sucessivos CEOs fizeram vários empréstimos milionários nada transparentes sob o lema da “modernização” da empresa. Como argumento, sempre diziam que aquela forma de gestão era temporária (até que se chegue ao fim da “modernização”, que não acabava nunca), e que logo haveriam (novamente) eleições diretas para CEO. Mas aquilo nunca acontecia e a má gestão continuava.

Foram mais de duas décadas assim. Quando funcionários faziam reclamações mais contundentes, escutavam frases como “ame a empresa ou deixe-a” ou até piores. Muitos bons funcionários foram obrigados a sair pela forte pressão, que incluía ameaças e agressão física na sombria salinha escura da segurança.

Aquela gestão passou a ser tão repudiada por outras empresas do mercado, que se tornou insustentável. Assim, aquela “panelinha” de diretores percebeu que não daria pra continuar e fez um acordo: sairiam da diretoria e voltariam só ao setor de segurança, mas em troca ninguém poderia ser investigado por quaisquer malfeitos até ali. Acordo estranho, mas não havia escolha. Era aquilo ou voltar para o jugo dos antigos gestores.

No ano seguinte houve a primeira eleição para presidência, que se mostrou bastante turbulenta: o funcionário eleito, um rapaz de família rica (talvez nem precisasse estar trabalhando ali…) foi eleito CEO, mas teve que ser demitido porque o conselho de administração e o jurídico alegaram que houve desvio de recursos: o CEO tinha passado um carro da empresa pro nome da esposa. Ao menos na nova administração esses casos passaram a ser investigados e divulgados, todos pensaram, ainda otimistas.

Os próximos CEOs foram muito melhores, principalmente quando um operador de máquina foi eleito. A empresa cresceu, passou a dividir melhor os lucros e os funcionários do operacional passaram a ganhar mais. A distribuição de lucros era bonita: até os operários podiam comprar carro, casa, e viajar para praias bonitas nas férias. Houveram alguns escândalos de membros do conselho administrativo recebendo presentes em troca de certas decisões, mas, indiscutivelmente, foi uma ótima época para a empresa, com um grande crescimento. Virou firma grande. Os números não mentem, diziam eles.

Mas alguns funcionários de cargos um pouco melhores, que antes ganhavam proporcionalmente muito mais, passaram a achar que aquilo era desnecessário: antigamente o operacional não ganhava quase nada e a empresa também funcionava. Porque mudar o que já funcionava?

Mesmo assim tudo ia razoavelmente bem, até que, em uma época especialmente ruim para o mercado, uma CEO mulher foi eleita. Era uma mulher com experiência em gestão, mas pouco traquejo entre algumas áreas da empresa, cujos gestores passaram a questionar sua competência. Como a CEO pegou a empresa em uma época de mercado ruim, ficou bastante difícil manter a sustentabilidade econômica. Ao mesmo tempo, ela tinha receio de fazer cortes no pessoal. Como a distribuição de lucros já não era tão polpuda, passou a existir uma grande pressão pela saída da CEO. As eleições seguintes foram bastante acirradas, mas mesmo de forma apertada a CEO ganhou mais uma vez.

A crise se acirrou. E embora as finanças estivessem piorando, as normas de compliance eram claras: a CEO só poderia ser destituída pelo conselho  caso a CEO não seguisse alguma regra. Embora não houvesse qualquer evidência disso, o conselho de administração decidiu inventar um “suposto malfeito” (que só bem depois foi esclarecido como erro) e colocar o assunto em votação na reunião de conselho. Embora todos soubessem que não havia nenhum malfeito, a crise financeira era, supostamente, um motivo legítimo para tirar a CEO. E assim aconteceu. O jurídico ratificou tudo: achou que legalmente o conselho poderia fazer aquilo. Os fins justificam os meios, diziam eles.

O novo CEO (que ajudou na pressão para mudança da CEO) tinha um desempenho longe de impressionante, mas ao menos tinha a amizade com o conselho de administração. Os salários diminuíram, houveram cortes. Mas ele só assumiria até a próxima votação, e assim quase todos aceitaram aquilo calados: era um problema temporário, que na próxima eleição poderia ser resolvido.

Na próxima eleição, no entanto, as pessoas começaram a perceber o óbvio: a mentira funcionava bem naquela empresa, e o ambiente se tornou altamente conturbado. Um antigo funcionário da segurança, conhecido por seus gritos e bravatas, que havia conseguido um cargo no setor de processos administrativos, se candidatou a novo CEO. Era um funcionário que ficou por 30 anos no setor de processos administrativos, mas nunca conseguiu aprovar qualquer processo, pois quase sempre eram para gerar privilégios ao seu antigo setor (segurança) e não faziam qualquer sentido para empresa.

Mas esse funcionário teve uma ideia boa: ele percebeu que havia muita gente insatisfeita com a crise instalada e fez um acordo com um analista do setor jurídico: o analista viraria diretor se assinasse a demissão por justa causa do candidato favorito à próximo CEO, e que era seu principal concorrente. Não havia motivo suficiente, mas aquele analista, embriagado com a ideia de virar diretor, assinou o papel. O dono da caneta é quem decide, diziam eles.

O funcionário demitido era aquele antigo operador de máquina, que foi um CEO com ótimos resultados no passado. Ficou desempregado um tempo, quando teve apoio de vários outros operadores de máquinas. Como o mundo dá voltas, foi recontratado alguns anos depois, quando conseguiu mostrar que sua demissão tinha sido fraudada.

Além de tirar o concorrente do páreo, esse candidato ardiloso criou um sistema de propagação de mensagens com mentiras sobre os demais concorrentes na intranet da empresa. Funcionou muito bem. Além disso tudo, prometeu mudanças radicais: “choque de gestão” para acabar com os projetos dos diretores anteriores, que supostamente eram o grande problema daquela firma. No fim, as mentiras na intranet, a demissão do principal concorrente por justa causa e a promessa de renovação da gestão foram suficientemente sedutoras, e aquele candidato virou CEO.

Claro que deu tudo errado novamente. O novo CEO, sem qualquer experiência em gestão, colocou seus antigos amigos do setor de segurança na diretoria, que virou um caos completo. O setor de compliance foi extinto, já que não fazia mais sentido nenhum: se as regras podiam ser “entortadas”, pra que ter regras? Ficaria tudo ao sabor do novo CEO.

Pra piorar, a indústria teve um problema de contaminação grave, que inicialmente foi ostensivamente negado pelo CEO. Quando não era mais possível negar, passou a culpar outras empresas e os gerentes das diversas áreas. Essa contaminação persiste e já trouxe enormes prejuízos, incluindo morte de funcionários. Para não perder o cargo, o CEO passou a distribuir cargos importantes e mais regalias ainda ao setor de segurança e também ao antigo conselho de administração, seus antigos inimigos e atuais melhores amigos. A amizade é relativa, diziam eles.

Até aquele analista jurídico que conseguiu um cargo de diretor para demitir um operário, mesmo ele, bem pouco afeito à ética, não conseguiu permanecer na empresa por muito tempo: não aguentou aquela gestão caótica, que certamente poderia condená-lo no futuro por malfeitos presentes. Um dia a conta chega, pensou nele, enquanto procurava um novo emprego e pedia demissão. Esse pessoal do jurídico sempre soube reconhecer problemas pelo cheiro.

Agora se tornou bastante evidente que este CEO ainda causará grandes prejuízos a empresa, que talvez nem mesmo possam ser superados pelo próximo CEO, já que a possível falência é o assunto do momento. Alguns funcionários, mais qualificados, já passam a procurar novas empresas.

No entanto, não há qualquer evidência de que esse CEO vá perder o cargo: muito embora o apoio dos funcionários (por motivos óbvios) seja a cada dia menor, alguns ainda o apoiam cegamente. O setor de segurança, no qual os cortes nunca chegaram, apoia ainda apoia fortemente o atual CEO, muito embora alguns já falem que o setor de segurança deveria aproveitar a péssima gestão para tomar toda a diretoria executiva duma vez.

O clima corporativo anda ainda mais pesado depois o antigo operário (devidamente recontratado) já disse que vai se candidatar CEO novamente. Mais da metade da empresa já disse que vai votar nele, se houverem eleições. A preocupação é grande, já que os gerentes do setor de segurança passaram a dizer que se quiserem assumem tudo a qualquer momento. Nos corredores, os gerentes do setor de segurança já estão falando em “pivotar”: Seria supostamente estratégico transformar aquela antiga multinacional em um bar temático, onde o público tomaria cerveja artesanal enquanto treina tiro ao alvo.

A linha de produção poderia virar um ótimo stand de tiro, dizem eles agora.

Mudar é preciso. O que poderia dar errado?