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Categoria: Volume I * nº. 4 * Dezembro de 2021
Edição de Dezembro de 2021 do Jornal América Profunda
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Brizola, 100 anos
Por: Vinicius Carvalho
Minha mãe sabe que eu escrevo textos e que vivo disso na prática, mas nunca leu nenhum deles. Eu tento separar as coisas, pois não parece, mas sou meio tímido e para ter o conforto e a liberdade para escrever sobre determinados assuntos, prefiro que meus parentes não leiam.Não é como se eu escrevendo fosse um personagem, mas o contrário, é como se eu fosse um personagem dentro da própria casa. Porém, desde ontem começou a cobrança da minha mãe, “Vinícius, amanhã é 100 anos do Brizola, você não vai escrever sobre ele”? Então, pedido de mãe é uma ordem. Meu pai sempre foi petista e minha mãe brizolista, esta foi a divisão da minha casa desde sempre.
A percepção de uma criança que viveu sob os auspícios do governo de Brizola em plena Baixada Fluminense sob dois mandatos é muito diferente do que o mito que foi criado em torno dele. Para nós, Brizola não era o homem da Campanha da Legalidade, o homem que havia voltado do exílio ou uma espécie de “Fidel Castro” brasileiro como afirmava em tons de temor a imprensa nacional.
Brizola era a dignidade batendo na nossa porta, era a autoestima de poder trabalhar com os sapatos engraxados, estudar com os kichutes limpos, pois Brizola significava o esgoto sendo canalizado, o asfalto chegando na sua rua e a água potável chegando na sua torneira. Para isso, sabia que tinha que governar e bem, para governar bem sabia que precisava conciliar, conciliar muito e tá tudo bem. Conciliar para quem nunca teve nada nunca foi problema, pelo contrário, sempre foi a política do possível.
Cabe lembrar que os anos 1980 e 1990 ainda eram marcados pela ação dos esquadrões da morte e grupos de extermínio, herança da ditadura militar, nos subúrbios e periferias. A esquerda possível nessas regiões ou estava restrita aos conselhos eclesiais de base, da Igreja Católica, ou às associações de moradores locais.
A primeira esquerda possível, as CEB’s, tinha participação limitada na vida política e acabava por se restringir em campanhas contra a carestia. Dom Adriano Hypólito, Bispo de Nova Iguaçu, ligado à esquerda, certa vez foi sequestrado, espancado, abandonado nu e com o corpo pintado de vermelho no Alto da Boa Vista. A segunda, os conselhos comunitários e associações de moradores, ainda mais vulnerável às estruturas violentas, era facilmente solapada e, por isso, mais uma vez, o que restava era dialogar e conciliar para barganhar.
Este foi o cenário que Brizola encontra ao voltar do exílio e vencer as eleições do RJ em 1982. Ali, não estava em jogo a geopolítica ou a revolução.
A revolução que Brizola faria, dali em diante, seria a esperança de futuro para as crianças pobres, o projeto dos CIEP’s implementado por Darcy Ribeiro e inspirado no modelo educacional cubano. Ensino integral, piscina, quadra de esportes, alimentação de qualidade e tranquilidade para os pais. A criança era deixada na porta da escola 7 horas da manhã e buscada às 18:00, alimentada, cheirosa e de banho tomado – afirmo sem medo de errar, se o projeto dos CIEP’s não fosse sabotado, o Rio de Janeiro hoje seria outro, um lugar infinitamente melhor, mais próspero e menos violento.
Outra revolução que Brizola faria seria cultural, nunca nenhum político se confundiu tanto e tão genuinamente com a cultura do Rio de Janeiro quanto o gaúcho. Brizola era oposto ao “manoelcarlismo* que dominava a imagem que a elite cultural carioca queria levar do Rio para o resto do Brasil, a Bossa-Nova-Zona-Sul, o branco forte moreno e de olhos verdes. Brizola era o homem que criaria o Sambódromo, era amigo de Beth Carvalho, era o cara que você entendia quando ouvia Fundo de Quintal.
Por ter ligação verdadeira com o subúrbio carioca, Brizola significou também uma melhoria na visibilidade da cultura verdadeiramente popular produzida na cidade.
Pouco ou nada faz sentido a tentativa que fazem até hoje de antagonizar Lula e Brizola. São figuras diferentes, com históricos políticos diferentes e que na época da redemocratização representavam bases sociais, políticas e espaços geográficos diferentes.
Brizola passara a ser forte no Rio, praticamente isolado, perseguido impiedosamente pela elite aristocrática local e pela Rede Globo, ainda nos anos finais da ditadura militar, e para isso teve que se aproximar do povo pobre e semialfabetizado.
Para tal, Brizola permeou o imaginário, não de jovens universitários e intelectuais recém voltados do exílio. Para fazer política popular, Brizola foi para São João de Meriti, filiou um pipoqueiro da pracinha central da cidade e o lançou candidato a prefeito pelo PDT. Foi para Caxias e filiou manicures, foi para Queimados e filiou pedreiros, foi para Magé e filiou açougueiros.
No Rio, sob rejeição e oposição da elite reacionária e da esquerda ilustrada, filiou e contou com apoio de figuras que a intelectualidade cultural havia transformado em personagens exóticos, como Agnaldo Timóteo, Carlos Imperial e até o Capitão do Tri, Carlos Alberto Torres.
Lula, em São Paulo, contava com uma base muito mais organizada e orgânica. Apoio de intelectuais da USP, do Novo Sindicalismo que beirava milhões de sindicalizados, dos Conselhos Eclesiais de Base – mas não numa região conflagrada pelo extermínio e pela miséria como a Baixada Fluminense – e sim no urbanizado, próspero, industrial, rico e desenvolvido ABC Paulista.
Não deveria existir choque ou rivalidade, Brizola e Lula representariam a complementação perfeita entre dois mundos e duas classes populares. Curiosamente, uma classe popular, a paulistana, industrial e filha da CLT de Vargas mas que tentava antagonizar e superar o varguismo; e outra, a fluminense, tão precarizada que em plenos anos 1980 sequer ainda tinha acessado aquele Brasil varguista, ainda estavam vivendo sob as condições de vida de algo muito parecido com a Velha República.
Lula, um pernambucano que migrou da seca e dos resquícios da Primeira República para a industrial São Paulo. Brizola, um gaúcho politicamente e socialmente bem posicionado que, bem como outros gaúchos, Vargas e Jango, foram para o Rio de Janeiro e lá tomaram um banho de povo.
Percebam, este é um texto que conta a perspectiva de um jovem sobre o Brizola, um texto de felicitações. Não cabe nele fazer apontamentos críticos, que até podem existir, mas não faria sentido aqui. Acredito que estejam pululando milhares e milhares de textos sobre o Velho Briza hoje na rede, alguns exaltando sua história, alguns se repetindo, muitos dizendo o quanto ele foi injustiçado, dezenas de outros querendo apontar suas inconsistências.
Já este, eu quero que seja uma carta de agradecimento em nome de quem foi criança sob seu governo, de pobres que tiveram as vidas melhoradas sob seu mandato. É um texto escrito a pedido de uma senhora nordestina que migrou para o Rio e gostava do Brizola de verdade, não no imaginário da classe-média ou dos seus meandros ideológicos, mas do que o Brizola tinha de povão.
Este texto é uma homenagem não apenas ao centenário de Leonel de Moura Brizola, mas também para a minha mãe que o pediu e mas não lerá, pois sequer terá paciência para tal. Porém ficará muito feliz e gratificada em saber que eu o escrevi.
Este foi o Brizola que eu conheci e marcou a minha vida, muito obrigado por tudo, Velho Briza.
* Manoelcarlismo; termo criado pelo amigo suburbano, Vitor Almeida. Historiador, intelectual, trabalhista, brizolista e ex-candidato a vereador pelo Rio de Janeiro, pelo PDT. Manoelcarlismo é o ato de produzir uma imagem única sobre o Rio de Janeiro, a de um suposto estilo de vida carioca, reproduzido pelas novelas de Manoel Carlos usando o Leblon como cenário e a Bossa Nova como onomatopeia.
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Sociedade do Diálogo
Por: Rodrigo G. M. Silvestre

A Nau dos Insensatos é uma pintura do artista brabantino Hieronymus Bosch (1450 — 1516) Vivemos uma sociedade limítrofe. As pessoas contemporâneas isolaram-se de tal forma, absortas em suas próprias realidades, que observam passivamente a degeneração social.
Tornamo-nos uma sociedade sedentária, violenta e depressiva. Frutos do que Byung-Chul Han vai chamar de Sociedade do Cansaço, somos incapazes de dialogar verdadeiramente entre nós. Estabelecemos pequenos monólogos simultâneos, de modo que mesmo estando da presença de outros, estamos sós.
Vertiginosamente caminhamos para morrer menos de verminoses e condições degradantes no parto, para morrer por armas de fogo, seja em conflito, seja por suicídios motivados pela depressão ou transtornos de ansiedade.
Esse será então o limiar que vivemos? Será fato que a sociedade ocidental como a conhecemos já atingiu seu ápice e agora vivenciaremos seu ocaso?
Não tenho pretensões messiânicas, mas acredito que os futuros possíveis são frutos da nossa representação e vontade. Na melhor linha de Schopenhauer e da virada linguística da Escola Austríaca.
Possivelmente podemos construir uma Sociedade do Diálogo. Pensar a interação entres as pessoas com base em uma missão comum, pautada em ouvir mais, ver mais, e falar menos. Interromper a sanha de ser ouvido na multidão de monólogos. Identificar a similaridade entre os discursos e criar um ponto de agregação, não de dominação.
A sociedade latino-americana, degradada de maneira crescente nesses últimos trinta anos, precisa projetar qual será sua identidade para os próximos trinta anos. Não parece um cenário animador a manutenção da trajetória atual. Especialmente porque o isolamento social deu espaço e voz ao que temos de pior. Na busca por nosso eterno salvador, demos espaço aos piores representantes de nossos grupos dominantes. O custo social e humano foi altíssimo.
Surgem sinais de mudança. Não de mudança progressista, infelizmente, mas de mudança de resgate de valores e diálogos mais humanistas, felizmente. Ao menos a sensação é de que o elevado custo social pago pela inércia e isolamento latino-americano conseguiu criar a comoção das pessoas, falta ainda a organização. Ainda estão os indignados aguardando pelo salvador, pelo líder carismático.
É preciso criar os espaços para o diálogo, para a ruptura das bolhas criadas pela adoção desenfreada das tecnologias de comunicação e informação. Bolhas dentro das castas sociais mais abastadas e bolhas sociais que expurgam integralmente do debate uma grande parte da população. É, portanto, necessário criar um contraponto, que passa pela revalorização do local, do cuidado com o território e uma redescoberta dos valores externos às rotinas do consumo.
Vivemos uma frequente disputa pela verdade, bem como uma discussão eterna baseada nos emissores e não mais nas ideias emitidas. Como resultado vemos efervescer os conflitos e as rupturas. Preferimos sofrer solitários a compartilhar os sofrimentos coletivamente e buscar soluções e cuidado. Mas se podemos identificar os problemas, possivelmente podemos propor soluções. Especialmente se essas são tão simples quanto permitir que o diálogo ocorra, mesmo sabendo que os temas iniciais serão difíceis, indóceis e pouco agradáveis. Explicitar os conflitos e ouvir os divergentes será um passo necessário, embora não seja suficiente. Precisaremos ir além e projetar em conjunto os resultados que queremos para a Pátria Grande!
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Editorial – Dezembro
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[et_pb_column type=”4_4″][et_pb_text admin_label=”Text”]Dezembro, um homem de barba, voz grossa, risada poderosa e barriga farta, é aguardado ansiosamente por toda a população, para trazer esperança, presentes e graças! Seria ele o Papai Noel? Seria ele Luiz Inácio? José Mujica? Ou seria ele Felipe Mongruel?Por toda América Latina, dezembro representa a revisitação das tradições natalinas de convivência e esperança. Mas de quem são essas tradições? Se esperamos por um velho senhor branco, que vem lá do Polo Norte para avaliar se fomos “bons” e merecemos então presentes. Comemos comidas que não são nossas e desejamos um futuro que não nos é possível.
O Jornal América Profunda se propôs a revisitar essas “verdades tradicionais” e buscar o resgate de nossa ancestralidade comum, assim como de nossas distinções fundamentais. Tem sido um árduo desenvolvimento e construção coletiva. Muito ainda se tem por fazer e comunicar. E hoje, o que nos agrega é a luta pela democracia.
Essa é a temática dessa edição de dezembro, Democracia, substantivo feminino! O futuro não será gestado na tradição dos líderes carismáticos que temos! Precisamos da real novidade!
Não é razoável negar que essa transição requer tempo, é preciso construir novas lideranças. Até lá, pela tamanha degradação social, ambiental, econômica e cultural que vive a América Latina, algumas dessas lideranças tradicionais serão ainda necessárias. E por suas capacidades de lidar como cenário atual, são desejáveis. Mas não são lideranças suficientes.
Não são suficientes pois não são mais representativos. Não deveriam ser mais os protagonistas em um continente que é essencialmente mestiço! No qual maiorias, como negros, ou minorias, como nações e povos originários, não podem mais ser apenas “ouvidos” pelos líderes brancos que irão dar-lhes ou não a salvação (ou presentes de Natal). Precisam ser os protagonistas nas posições de liderança.
Segundo pesquisa recentemente pública pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), a América Latina vivencia ainda uma profunda e estrutural desigualdade quando consideram-se determinações de raça e gênero para estudar a assimetria de renda. Segundo pesquisas realizados pela CEPAL em 2020, com base em dados coletados entre 2017 e 2018, em geral, na América Latina tanto a pobreza quanto a pobreza extrema possuem maior incidência entre negros em comparação ao restante da população. Ademais, quando comparado com o restante da América Latina, o cenário brasileiro, por exemplo, ainda se destaca por apresentar a maior disparidade na taxa de pobreza incidente sobre negros em comparação com o restante da população.
Com relação ao recorte de sexo, a tendência da região latinoamericana , permite observar os maiores índices de feminização da pobreza entre a população negra se comparado com a não-negra. Segundo estudo da CEPAL (2020), em 2019, para cada 1000 homens vivendo em domicílios em situação de pobreza, tomando novamente o Brasil como exemplo, havia 1126 mulheres vivendo nessas mesmas condições. Ou ainda que 705 mil homens brancos, ganham o mesmo que todas as 32,7 milhões de mulheres negras do Brasil!
Nesse sentido, não faz sentido mais que esses mesmos homens brancos represente as vozes dessas mulheres no Estado Democrático. É preciso abrir alas para que elas possam protagonizar a construção de um futuro menos desigual. A pandemia mostrou o resultado comparativo entre os estados governados por mulheres e os liderados por velhos homens brancos “tradicionais”. A diferença foi literalmente um caso de vida e morte.
Vivemos enfim, um momento de esperança, seja pela retomada de uma via democrática no Chile, com a vitória de Gabriel Boric nas eleições nacionais, seja com a expectativa de retomada de uma liderança com sensibilidade popular como Lula no Brasil. Nesse sentido, dois Natais separam esses territórios de uma virada para o olhar social. Menos Minsky e mais Mariana Mazucatto! Precisamos de líderes (possíveis) que implementem um Estado Orientado por Missão! Só assim poderemos compartilhar de fato o valor, e eliminar as mazelas sociais que nos fustigam na posição de colonizados. Mas a missão do nosso Estado Latinoamericano não pode vir proposta de fora, precisa ser disputada e construída internamente! Para isso, existe esse Jornal, para criar o debate e o espaço de Diálogo.
Nessa edição, alguns marcos são importantes para compartilhar. Um deles é a adoção de licenças abertas (não comerciais) para o conteúdo do Jornal. Acreditamos que é uma forma de expandir o debate e manter animada a discussão na América Latina e além dela. Outro ponto de muito orgulho, é a obtenção no nosso ISSN (International Standard Serial Number), então agora nosso conteúdo também conta como produção para nossos autores e colaboradores! Seguimos na luta e em busca de fortalecimento de nossa grande nação latino-americana! Saúde e Socialismo!
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Capitalismo e catador de lixo
Por: Fernando Eurico L. Arruda Filho
Como o catador de lixo está inserido no sistema capitalista
How the garbage collector is inserted in the capitalist system
Defensor Público do Maranhão
lopes.arrudafilho@gmail.com
Resumo
A lógica do sistema capitalista é a ampliação do valor de troca das mercadorias. Com a priorização da embalagem das mercadorias, em detrimento do efeito prático destas, perfaz-se a lógica esquizofrênica da cadeia incessante da obsoletização dos produtos, os quais possuem cada vez mais uma menor vida útil. O reaproveitamento dos produtos ingressa nessa reprodução ampliada do capital para ter valor de troca, por isso o interesse do capital na reciclagem. No segundo momento do circuito econômico, configura-se a mais-valia do catador de lixo, o qual é inserido na sistemática, como reciclador, em condições aviltantes, ficando à mercê de atravessadores e sucateiros. A lucratividade desse segundo ciclo advém da precarização do catador. Para amenizar essa situação, devem ser instituídas a coleta seletiva e associações e cooperativas de catadores, além de campanhas publicitárias educativas para a coleta a partir dos domicílios e a efetivação da Lei 12.305/10 (Política Nacional de Resíduos Sólidos).
Palavras-chave: 1. Capitalismo. 2. Obsoletização. 3. Catador.
Abstract
The logic of the capitalist system is the expansion of the exchange value of goods. With the prioritization of the packaging of goods, to the detriment of their practical effect, the schizophrenic logic of the incessant chain of obsolescence of products, which have an increasingly shorter useful life, is made. The reuse of products enters this expanded reproduction of capital to have exchange value, hence the interest of capital in recycling. In the second moment of the economic circuit, the added value of the garbage collector is configured, which is inserted in the system, as a recycler, in demeaning conditions, being at the mercy of middlemen and scrap dealers. The profitability of this second cycle comes from the precariousness of the collector. To alleviate this situation, selective collection and associations and cooperatives of collectors should be instituted, in addition to educational advertising campaigns for collection from households and the implementation of Law 12,305/10 (National Policy on Solid Waste).
Keywords: 1. Capitalism. 2. Obsolete. 3. Waste picker.
O catador como elemento necessário para um sistema que o expele
Hoje se prega muito o discurso do meio ambiente sustentável. Uma das principais recomendações da Agenda 21 da ECO 92 foi a reciclagem de resíduos sólidos, com vistas à diminuição dos problemas ambientais, economia de energia e evitar desperdício. A reciclagem é o reaproveitamento do que se desperdiça. É a recuperação das potencialidades de uso do produto através de processos de transformação físico-químicos, tendo o produto, ao final, valor de troca. Assim, o reaproveitamento diminui a degradação ambiental.
Como a fabricação prioriza a embalagem em detrimento do efeito prático do produto, o descarte de rejeitos na natureza assumiu proporções inimagináveis na nossa sociedade essencialmente consumista. Por isso a importância da reciclagem.
O catador de lixo é uma simples peça de uma engrenagem bem mais complexa e grandiosa. A lógica esquizofrênica capitalista segue a seguinte ordem quanto ao ciclo dos produtos: 1ª) fabricação; 2ª) consumo; 3ª) rejeito; 4ª) catação; 5ª) reutilização; 6ª) nova fabricação; 7ª) novo consumo; e 8ª) novo rejeito. Ou seja, o circuito econômico é a industrialização, o consumo e o descarte (resíduo sólido), numa cadeia incessante.
O elemento fundante do sistema capitalista é a obsoletização das mercadorias que significa a diminuição cada vez maior da vida útil dos bens de troca. O ciclo de reprodução capitalista se alimenta do aumento do mercado de troca, surgindo, a partir disso, o mercado cada vez maior dos ferros velhos. Com a taxa decrescente de utilização do valor de uso das mercadorias, acelera-se a produção e o posterior descarte. O capitalismo se autorreproduz por esse motor.
O capital se preocupa somente com sua reprodução ampliada. Não se importa com o destino das mercadorias e o aproveitamento delas. É uma contradição imanente ao próprio sistema capitalista o qual gera novas necessidades e mercadorias a todo instante. Para o mecanismo capitalista, o produto tem que ser vendável, não necessário ao consumo humano. São despiciendas a utilidade ou mesmo o próprio desperdício. A sistemática ampara-se sempre numa evolução sem quaisquer limites.
Marcelino Gonçalves bem elucida essa questão:
Neste sentido a produção capitalista não visa primordialmente a satisfação da necessidade dos produtores diretos, ou de qualquer outro membro da sociedade. O seu fim é garantir o ímpeto de reprodução do capital através do consumo, e esta é a racionalidade, a razão que lhe dá sentido. Daí, pouco interessar a utilidade ou o desperdício das mercadorias por quem as adquire, desde que ela cumpra a sua função no sistema do capital. (GONÇALVES, 2006, p. 105)
A mercadoria tem que ter valor de troca através de uma transação comercial de modo que a partir disso se evidencia a utilidade da mercadoria pelo seu ato de venda. Para o capital, a mercadoria tem que ser menos usada, pois, assim, será logo descartada e substituída por outra para seguir o ciclo de venda de outras peças. O produto tem que se inserir num tempo cada vez diminuto de sequência de troca.
O capital não objetiva a satisfação das necessidades humanas, senão não existiriam famintos no mundo. As mercadorias são cada vez mais frágeis e descartáveis. Quanto mais for diminuída a vida útil da mercadoria, mais o capital se amplia. Isso eleva a produtividade, apesar de o consumo se fincar em número concentrado de pessoas.
Como o consumo é o ápice do processo capitalista, é através dele que o capital se amplia e se reproduz, originando a taxa de utilização decrescente da vida útil das mercadorias cuja expressão é o desperdício, como aponta mais uma vez Marcelino Gonçalves:
O desperdício é expressão da taxa decrescente de utilização, que abrevia a vida útil das mercadorias e gera uma grande quantidade de resíduos, de coisas que não servem mais para quem as dispensa. No entanto, sabemos que esse objeto, agora sem utilização, não perdeu as suas características físico-químicas, nem sua forma corpórea deixou de ser fruto de trabalho humano socialmente organizado. O que acontece é que ele está no momento de seu descarte, posto fora de um contexto social e econômico que lhe dava sustentação enquanto objeto útil e ingressa em outro contexto socioeconômico e político. (GONÇALVES, 2006, p. 107)
A racionalidade, portanto, é do desperdício, ocasionando a destruição do meio ambiente. Karl Marx assenta que a produção das mercadorias reproduz o próprio sistema capitalista. E qual o interesse do capital na reciclagem? Por que a reciclagem faz parte de uma outra engrenagem que sustenta uma reprodução ampliada do capital?
Um dos problemas decorrentes do consumismo é a geração de resíduos sólidos e o reaproveitamento destes é a solução para um meio ambiente saudável e sustentável. Além disso, no que diz respeito ao trabalho, o catador de lixo participa de uma outra dimensão social e econômica em toda essa estrutura do capital. É o circuito econômico da reciclagem, com a compra e venda, transporte, armazenamento e pré-processamento dos produtos mais procurados: papel, plástico e metais, por terem mais poder de troca.
Para que esse segundo momento econômico exista, o trabalho do catador de lixo é essencial.
O trabalho de catação, que dá vida a um sistema que o expele, é feito em ruas, lixões, cooperativas e usinas de triagem e compostagem. O catador é a base de uma segunda etapa do circuito econômico do capitalismo, pois reciclam os materiais rejeitados.
Essa reciclagem é realizada em condições aviltantes, sem vínculo formal e remuneração digna, gerando grande margem de lucro àqueles que se apropriam do trabalho do catador de lixo. A lucratividade diminuiria se ocorresse o fornecimento de chapéus, botas, luvas, óculos e máscaras aos catadores, além da construção de diversos outros aparatos em prol dos catadores.
Para Marx, a produção no capitalismo dá-se pela mais-valia. Segundo ele, o valor da mercadoria produzida tem que ser maior que a soma dos valores das mercadorias, meios de produção e força de trabalho exigidos para a produção daquela.
Ou seja, para o capitalismo, uma mercadoria só é considerada um produto do trabalho humano quando ela preencher uma relação de troca. Como não poderia ser diferente, no processo de reciclagem também ocorre a mais-valia, que é a apropriação do trabalho humano. O trabalho do catador de lixo é extremamente vilipendiado, sobrepujando sobremaneira a mais-valia.
Quanto à mais-valia, Marx pontua:
Mas a renda pressuposta de toda classe proprietária tem que surgir na produção, e, portanto, ser de antemão uma dedução do lucro ou dos salários […] Para que se aumente o valor do lucro, tem que haver um terceiro cujo valor se reduza. Quando se afirma que o capitalista gasta 30 dos 100 em matéria-prima, 20 em maquinaria, 50 em salário e que logo vende estes 100 por 110, desconsidera-se que, se tivesse desembolsado 60 pelo salário, não haveria obtido lucro algum, salvo que obtivesse mais que os 110, uns 8,2%, etc. Ele troca seu produto por outro cujo valor está determinado pelo tempo de trabalho nele empregado. Vendeu um produto de 20 dias de trabalho, digamos, e obtém um dia por cada dia. O excedente não surge da troca, ainda que tão somente nela se realize. Surge de que deste produto que consome 20 dias de trabalho, o obreiro só obtém o produto de 10, etc., dias de trabalho. Na mesma medida em que cresce a força produtiva do trabalho, decresce o valor do salário. (MARX, 2006, p. 77)
Assim, a operação quanto aos resíduos recicláveis é o outro circuito econômico com um contexto socioeconômico e político bem diferente do primeiro. E qual a lucratividade de um ciclo econômico que trata de algo que foi descartado? O lucro advém de uma precarização cada vez maior das relações de trabalho nas quais o catador está imerso, o qual fica sempre à mercê de sucateiros e atravessadores.
Qualquer esforço no sentido de mudar essa lógica para dar ao catador melhores condições de trabalho é meramente paliativo, pois, no contexto em que o capitalismo se encontra, miséria e deterioração ambiental estão se consolidando mais e mais. A recuperação dos resíduos sólidos objetiva somente reinserir um novo produto no mercado de consumo, sem qualquer outra satisfação, como afirma Marcelino Gonçalves: “(…) a recuperação do valor de uso real e efetivo, no caso dos materiais contidos nos resíduos recicláveis, não objetiva prioritariamente a satisfação de uma determinada necessidade social” (GONÇALVES, 2006, p. 117).
Trabalho e natureza são capturados pelo capitalismo e as consequências disso são degradação ambiental e precarização do trabalho dos catadores. E quais as possíveis soluções?
Foto de João Paulo Guimarães. Lixão de Pinheiro-MAPossíveis soluções
O poder público municipal tem papel protagonista na amenização desse aviltamento do catador. É obrigação municipal criar centrais de triagem para a comercialização dos resíduos sólidos e inserir os catadores no processo produtivo da reciclagem, conforme a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10).
Necessária a efetivação de políticas públicas em favor dos catadores já estabelecidas legalmente. Além das condições seguras e higiênica para o exercício do ofício e a inclusão no mercado formal de trabalho, o catador precisa trabalhar com um produto de qualidade. Tem que haver uma reparação anterior dos produtos orgânicos e inorgânicos a fim de evitar contaminação. Isso significa economicidade.
O descarte, portanto, tem que ser de qualidade. Numa ponta do ciclo encontra-se o catador o qual deve estar preparado para receber aquele produto. Por isso a importância da constituição de cooperativas e associações de catadores para as quais devem ser destinados os materiais pertinentes. No início do trânsito, o produto já não pode estar contaminado. As cooperativas e associações devem estar equipadas com o maquinário suficiente para o tratamento do produto. O catador deve ter o treinamento necessário para utilizar as máquinas e se inserir nesse circuito produtivo.
Os produtos descartados são de três espécies: matéria orgânica, rejeito e material reciclável. O trabalho feito em cooperativas e associações de catadores é a triagem, prensagem e estocagem para posterior venda. Para que a recuperação dos resíduos sólidos tenha mais eficácia, é imprescindível uma coleta seletiva cujo fundamento é encaminhar os materiais recicláveis para as cooperativas e associações de catadores, além de não os misturar com os resíduos orgânicos.
Com a coleta seletiva e o devido tratamento dos materiais, o resíduo chegaria mais limpo para os catadores, os quais disporiam de produtos mais comercializáveis e com melhor preço.
Tudo isso passa pela construção de aterros sanitários para os quais devem ser destinados os rejeitos (produtos inservíveis). Mas, antes desse escoamento, o produto deve ser encaminhado para usinas de triagem e compostagem, para recuperação dos recicláveis e armazenamento dos resíduos orgânicos, a fim de que o catador tenha um produto passível de ser transformado para ser recolocado no ciclo das trocas de consumo.
Entretanto, qualquer política que inclua o catador na engrenagem produtiva do capital deve ter como pano de fundo uma campanha de conscientização sobre o programa de coleta seletiva de resíduos sólidos a partir dos domicílios. Para se chegar a um a efetivo descarte seletivo, é imprescindível o envolvimento de toda a sociedade. A consolidação de uma consciência cidadã referente à seletividade dos produtos que irão ao “lixo” é a medida primeira para que todo esse esforço tenha sucesso.
É imprescindível o dispêndio financeiro com campanhas publicitárias educativas para conscientizar a população sobre a coleta seletiva. Isso não beneficia somente o catador, mas todos, haja vista que se terá uma cidade mais limpa e um meio ambiente menos degradado.
Na prática, muitos governantes ficam desestimulados com a enorme despesa pública para o funcionamento de centrais de triagem. Por isso a falta de investimento na coleta seletiva, de maneira que a conscientização do cidadão, através de boas campanhas publicitárias educativas, é o caminho mais eficiente e menos oneroso para que toda essa arquitetura tenha sucesso e o produto chegue ao catador com mais qualidade.
Por outro lado, devem ser implementadas as políticas públicas da Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelecidas pela Lei 12.305/10, a qual consagra todos os direitos dos catadores. Apesar da dificuldade estrutural que o sistema capitalista impõe, como já dito, tem que haver a inclusão dos catadores nesse trajeto econômico para que eles alcancem autonomia através de uma associação ou cooperativa, pois não podem viver somente de assistencialismo.
Com o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020), a execução de ações direcionadas à reutilização, reciclagem e valorização dos resíduos sólidos deve ser efetivada com a participação dos catadores, não somente de empresas privadas de reciclagem.
Enfim, é nesse sentido que se pode dizer que assim se resgatará uma dívida histórica com os catadores e aos quais será dada uma situação menos dramática.
Referências
GONÇALVES, Marcelino Andrade. O trabalho no lixo. 2006. Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2006. Pág. 105
MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse) 1857-1858. vol. 3. Madri: Siglo Veintiuno Editores, 13. ed., 2006.
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Editorial – Diciembre
Diciembre, un hombre con barba, voz gruesa, risa poderosa y gran barriga, es esperado con impaciencia por toda la población para traer esperanza, regalos y gracia (bendiciones) ¿Es Papá Noel? ¿Es Luiz Inácio? ¿José Mujica? ¿O es Felipe Mongruel?
En toda América Latina, diciembre representa la revisión de las tradiciones navideñas de convivencia y esperanza. Pero, ¿de quién son estas tradiciones? Si esperamos a un anciano blanco, que viene del Polo Norte, para valorar si fuimos “buenos” y merecemos regalos. Comemos alimentos que no son nuestros y queremos un futuro que no es posible para nosotros.
El Jornal América Profunda se propuso revisar estas “verdades tradicionales” y buscar rescatar nuestra ascendencia común, así como nuestras distinciones fundamentales. Ha sido un arduo desarrollo y construcción colectiva. Queda mucho por hacer y por comunicar. Y hoy, lo que nos une es la lucha por la democracia.
Este es el tema de este número de diciembre, ¡Democracia, sustantivo femenino! ¡El futuro no se forjará en la tradición de los líderes carismáticos que tenemos! ¡Necesitamos las noticias de la realidad!
No es razonable negar que esta transición lleva tiempo, es necesario construir nuevos liderazgos. Hasta entonces, debido a la gran degradación social, ambiental, económica y cultural que vive América Latina, algunos de estos líderes tradicionales seguirán siendo necesarios. Y por su capacidad para afrontar el escenario actual, son deseables, pero no son liderazgo suficientes.
No son suficientes porque ya no son representativos. ¡Ya no deberían ser protagonistas en un continente esencialmente mestizo! En el que las mayorías, como los negros, o las minorías, como las naciones y los pueblos originarios, ya no pueden simplemente ser “escuchadas” por los líderes blancos que les darán o no la salvación (o los regalos de Navidad). Necesitan ser los protagonistas en los puestos de liderazgo.
Según una encuesta publicada recientemente por el Centro de Investigación en Macroeconomía de las Desigualdades (Made), América Latina sigue experimentando una desigualdad profunda y estructural al considerar las determinaciones de raza y género para estudiar la asimetría de ingresos. Según una investigación realizada por la CEPAL en 2020, con base en datos recolectados entre 2017 y 2018, en general, en América Latina tanto la pobreza como la pobreza extrema tienen una mayor incidencia entre las personas negras en comparación con el resto de la población. Además, en comparación con el resto de América Latina, el escenario brasileño, por ejemplo, aún se destaca por presentar la mayor disparidad en la tasa de pobreza que afecta a las personas negras en comparación con el resto de la población.
En cuanto al género, la tendencia en la región latinoamericana nos permite observar las mayores tasas de feminización de la pobreza entre la población negra en comparación con la población no negra. Según un estudio de la CEPAL (2020), en 2019, por cada 1000 hombres que vivían en hogares pobres, tomando nuevamente a Brasil como ejemplo, había 1126 mujeres viviendo en estas mismas condiciones. ¡O incluso que 705.000 hombres blancos ganan lo mismo que los 32,7 millones de mujeres negras en Brasil!
Ya no tiene sentido que estos mismos hombres blancos representen las voces de estas mujeres en el Estado Democrático. Es necesario abrir espacio para que puedan desempeñar un papel protagonista en la construcción de un futuro menos desigual. La pandemia mostró el resultado comparativo entre los estados gobernados por mujeres y los dirigidos por viejos y blancos “tradicionales”. La diferencia era literalmente una cuestión de vida o muerte.
Finalmente, vivimos un momento de esperanza, ya sea por la reanudación de un camino democrático en Chile, con la victoria de Gabriel Boric en las elecciones nacionales, o por la expectativa de retomar un liderazgo con sensibilidad popular como Lula en Brasil. En este sentido, dos navidades separan estos territorios de un giro hacia la perspectiva social. ¡Menos Minsky y más Mariana Mazucatto! ¡Necesitamos líderes (posibles) que implementen un estado impulsado por una misión! Solo así seremos capaces de compartir verdaderamente el valor y eliminar los males sociales que nos acosan en la posición colonizada. Pero la misión de nuestro Estado latinoamericano no puede venir de afuera, ¡hay que disputarla y construirla internamente! Para eso, existe el Jornal, para crear el debate y el espacio para el Diálogo.
En esta edición, es importante compartir algunos hitos. Uno de ellos es la adopción de licencias abiertas (no comerciales) para el contenido del Jornal. Creemos que es una forma de ampliar el debate y mantener viva la discusión en América Latina y más allá. Otro punto de gran orgullo es obtener nuestro ISSN (Número de serie estándar internacional), por lo que ahora nuestro contenido también cuenta como producción para nuestros autores y colaboradores. ¡Seguimos en la lucha y en la búsqueda de fortalecer nuestra gran nación latinoamericana! ¡Salud y socialismo!
