Categoria: Movimentos Sociais

Coluna Movimentos Sociais. Editor responsável:

  • Mães e pais de rua são separados de crianças após parto em Curitiba

    Mães e pais de rua são separados de crianças após parto em Curitiba

    Republicado em parceria com: Agência de Noticias das Favelas – ANF

    Foto destacada: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

    Magra, vestindo roupas largas e evitando ruas movimentadas, mal dá para perceber que Viviane Nascimento Araújo, de 31 anos, está no oitavo mês de gravidez. Em sua terceira gestação nas ruas, ela se esconde do julgamento de quem passa e, principalmente, das equipes do Conselho Tutelar. Seu primeiro parto aconteceu no dia 14 novembro 2007, em Curitiba.

    “Tive meu primeiro filho com 16 anos. O Gabriel nasceu saudável, tive ele em um hospital público no centro da cidade, foi parto normal. Eu vi na incubadora, ele segurou meu dedinho e sorriu. A assistente social e a enfermeira disseram para eu chamar a minha família e voltar no mesmo dia, para amamentar. Voltei poucas horas depois, meu menino não estava mais lá”, conta Viviane, com lágrimas nos olhos.

    Aos 14 anos, ela já morava nas ruas. Órfã de mãe, enfrentava violência sexual e doméstica do tio, alcoólatra, que agredia sua tia e as próprias filhas. Viviane passou um ano transitando entre terminais de ônibus e o centro de Curitiba. Eventualmente, passava pela triagem das equipes de assistência social, mas, mesmo sendo adolescente, nunca foi encaminhada para um abrigo.

    Aos 15 anos, conheceu a cocaína e o crack e se tornou dependente química. Uma no depois, conheceu Marcos Alceu, de 48 anos, também morador de rua e dependente químico, de quem engravidou pela primeira vez.

    “Marcos me acompanhou durante toda a gravidez, ele é alcoólatra, mas não é violento, teria sido um bom pai. Quando dei entrada no hospital, não deixaram ele me acompanhar, por ser morador de rua”, relata Viviane.

    Viviane saiu da maternidade 24 horas após dar à luz, em busca do seu companheiro, para levarem o filho para casa da sogra e começar uma nova vida. Mas, ao voltarem ao hospital, em menos de três horas, o Conselho Tutelar havia levado Gabriel para o acolhimento. Viviane e Marcus nunca mais tiveram qualquer informação sobre a criança.

    Falta de dados e invisibilidade da população de rua

    Em Curitiba, mendigos e moradores de rua incomodam moradores e comerciantes  | Tribuna PR - Paraná Online
    Foto: Gerson Klaina

    De acordo com dados de julho de 2022 do Cadastro Único do governo federal, Curitiba é a capital do Sul do país com mais gente em situação de rua. São 3.087 pessoas registradas. Mas as autoridades reconhecem que esse é número subnotificado pela dificuldade de acessar e realizar a inscrição no Cadastro.

    A assessora jurídica do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM), da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), Camila Mafioletti Daltoé, aponta a dificuldade em obter dados reais sobre a população em situação rua.

    Diante disso, surgem algumas iniciativas, como o Grupo Mães de Rua. Ele une a Defensoria Pública do Paraná, a Rede de Proteção da Infância, profissionais da área da saúde que atuam no Consultório na Rua, além de movimentos socais e do terceiro setor, como a ONG Mãos Invisíveis, INRUA. Inclui também profissionais da prefeitura.

    Grupo Mães de Rua busca evitar o acolhimento institucional de recém-nascidos de mulheres em situação de rua e usuárias de substâncias psicoativas, com atuação nas regionais Boa VistaMatrizCajuru e Portão.

    “Não há um mapeamento de quem são essas mulheres, onde elas estão, quais as dificuldades enfrentadas por elas, o que os serviços públicos oferecem para a essa população. Estamos em contato com diferentes instituições que atuam com população em situação de rua para conseguirmos transpor as barreiras da falta de políticas públicas, a mesma falta de políticas que resultem na negação da maternidade para essas mulheres”, afirma Camila.

    União em defesa das mães

    Tamíres Oliveira, assistente Social do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) da Defensoria Pública do Paraná também integra o Grupo Mães da Rua e explica que casos como o de Viviane e Marcos são comuns.

    “Muitos casos chegam à Defensoria Pública sem que a mãe tenha qualquer informação sobre o processo. A equipe que notificou o Conselho Tutelar, o Ministério Público e todos os outros agentes citados no processo não repassaram qualquer informação à família”.

    Tamíres afirma que, em Curitiba, não há políticas de amparo para essas famílias e que o atendimento pelos serviços públicos pode causar medo às gestantes.

    “Não há uma casa da gestante, ou casas de passagens que acolham casais. E o fato da gestante estar em uma casa de passagem é visto como negativo, como se a mãe não tivesse a capacidade protetiva para criança. Mas como a mãe que está sendo protegida pelo Estado nas casas de passagem é vista como ameaça? Não faz sentido esse olhar punitivo e conservador”, afirma Tamíris.

    Ainda segundo as integrantes do Grupo Mães da Rua, não há uma solução pronta para o problema. É preciso de um trabalho de combate à desproteção social e a efetivação de políticas públicas integradas e efetivas.

    Campinas tem uma casa de acolhimento para gestantes em situação de rua, existem situações de êxito e respeito para maternidade dessas mulheres. Precisamos romper com o olhar conservador e cumprir o papel do Estado em proteger essa população”, afirma Camila.

    A luta diária pelo direito de ser mãe na rua

    Pandemia faz crescer número de moradores de rua em Curitiba e muitos deles esperam pela chance de dar a volta por cima.
    Foto: Arquivo/Marcelo Elias/Gazeta do Povo.

    Em frente ao terminal de ônibus do Guadalupe e ao lado da Igreja de mesmo nome, Isabel Cristina Lopes aguarda seu filho chegar da escola. Não citaremos seu nome, mas ele tem quatro anos e estuda em um dos Centro Municipais de Educação Infantil (CMEI) do centro de Curitiba. Seu pai, Josimar Silva, leva e busca Bruno todos os dias na escola.

    “Já me denunciaram na escola por eu ser sem teto, chamaram o Conselho Tutelar, mas eu e o Josimar sempre dormimos em lugares diferentes, não ficamos nos mesmos espaços, não vão levar meu filho”, afirma Isabel.

    Bruno é o segundo filho de Isabel e o quinto de Josimar. Isabel também é mãe de Maria Aparecida de Jesus, que nasceu me 2011 também em Curitiba. Josimar tem quatro filhos dos quais não possui a guarda.

    Isabel se separou de sua filha com menos de seis meses de idade, quando a justiça determinou que ela não apresentava condições de exercer a maternidade e sua filha foi encaminhada para uma casa de acolhimento de crianças e adolescentes.

    Dois dos filhos de Josimar moraram com os avós até os oito e seis anos, quando também foram acolhidos pela Justiça e logo foram destituídos do poder familiar e seguiram para adoção. Seus outros filhos, nascidos 2018 e 2020 vivem com a irmã de Josimar, que os visita aos finais de semana.

    Em seu primeiro parto, Isabel sofria de dependência química e foi encaminhada, junto com a filha, para um centro de reabilitação. Mas, assim que terminou a estadia determinada pela Justiça Estadual, sua filha foi encaminhada para o acolhimento institucional e Isabel e nunca mais teve notícias.

    Destituição está prevista no ECA

    De acordo com a advogada Bruna Bhal Emiter, essas decisões de acolhimento e destituição seguem o artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que institui que na falta de recursos materiais, a família deve ser encaminhada a serviços e programas oficiais de proteção e apoio.

    De acordo com Bruna, o sistema judiciário identifica a falta de consultas médicas, sintomas de abstinência, e vícios são usados como elementos que justificam a retirada da criança da mãe.

    “Infelizmente, a Justiça pune as mães, pais, famílias com decisões punitivistas e preconceituosas. Não é oferecido para essa mãe a maternagem, as condições são apenas para punir. Há pouco esforço em procurar a extensão familiar ou sequer procurar o pai. É todo um sistema para punir mulheres e crianças”, afirma a advogada.

    Depois de experiências tão ruins, Isabel e Josimar não confiam nos serviços de atendimento à população de rua. Evitam postos de saúde e até mesmo o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI)

    “Lá eles não sabem ainda que moramos na rua. Todo o dia eu recolho meu colchão, minhas coisas, e mudo de lugar. Eu e meu filho tomamos banho em uma pastelaria que me cede o banheiro. Logo iremos para uma ocupação, começar a nossa vida, mas por enquanto é isso. Eu tenho medo da professora querer tirar ele de mim”, preocupa-se Isabel.

    Eu nunca abandonei

    Eu nem sei como é o rosto dele. Rezo todos os dias para que Gabriel esteja bem e seja amado como eu o amo, mesmo sem conhecer. Eu acredito que Deus deu um lar com amor para ele”, diz Viviane.

    “Às vezes eu ando nas ruas olhando para as meninas da idade de Maria Aparecida. Ela tem 12 anos. Olho todas as meninas mesmo, as dentro do ônibus, de escola particular, de rua, eu vejo se é meio parecida. Eu quero encontrar ela, nem que seja para dizer que eu nunca a abandonei, que eu sou a mãe dela”, afirma Isabel, em lágrimas.

    A história de Viviane, Isabel e de tantas outras mulheres convive diariamente com a saudade, a dor e a incerteza sobre como e onde estão seus filhos. Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem quase 34 mil crianças e adolescentes abrigadas em casas de acolhimento e instituições públicas por todo país.

    Destas, 5.040 estão totalmente prontas para a adoção, sendo 1.203 crianças encaminhadas para adoção por destituição familiar.

    Conselho Tutelar explica procedimentos

    Claudia de Lara, coordenadora do Conselho Tutelar de Curitiba explica que quando recebem notificação de gravidez ou sobre crianças em situação de rua, o primeiro passo é acionar a rede de proteção à infância, realizar a busca ativa por familiares e buscar a amparo da pessoa gestante. Somente quando são esgotadas todas essas alternativas, começa o processo de destituição familiar.

    A destituição familiar é o processo legal em que a autoridade competente decide retirar a guarda de uma criança de seus pais ou responsáveis devido a situações de abuso, negligência grave ou outras circunstâncias que coloquem a criança em risco.

    destituição familiar ocorre quando é determinado que o ambiente familiar não é seguro ou adequado para o bem-estar da criança. A decisão é tomada visando proteger seu interesse, garantir segurança e desenvolvimento saudável.

    Já o acolhimento é uma medida de proteção que busca oferecer um ambiente temporário para crianças que foram removidas de suas famílias devido a situações de risco. O acolhimento pode ocorrer em instituições especializadas, como abrigos ou lares substitutos, onde as crianças recebem cuidados, apoio emocional e a oportunidade de desenvolver-se em um ambiente estável enquanto as circunstâncias familiares são avaliadas.

    destituição familiar envolve a perda da guarda da criança pelos pais ou responsáveis legais. O acolhimento é uma medida temporária. O objetivo final é sempre buscar a reunificação familiar quando for possível e seguro para a criança, ou, quando necessário, encontrar uma família adotiva.

    Por: Raíssa Melo
    @rsm_raissa

  • Inelegibilidade

    Por  Desiree Salgado

    Oitava coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado

  • Respeite a CF

    Por  Desiree Salgado

    Setima coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado

  • Biografias

    Por  Desiree Salgado

    Sexta coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado

  • Inelegibilidades

    Por  Desiree Salgado

    Foto da Autora: Desiree Salgado

  • Heróis de pano

    Heróis de pano

    Por: Willian Carneiro Bianeck

    Deltan Dallagnol é o representante máximo, junto com Sergio Moro, do lavatismo enquanto apêndice do bolsonarismo. Nunca apoiou diretamente o nome do inominável, mas deixava clara a sua antipatia: tudo, menos o PT. E esse tudo englobava todo o chorume que conhecemos: negacionismo, familismo, militarismo, desmonte do Estado e das instituições. Aparentemente na cabeça do crente persecutor a melhor forma de acabar com o “sistema de corrupção” (sic) seria não se ter um sistema com regras.

    Afinal, super-heróis como ele não gostam muito de normas constitucionais: fazem escutas fora da lei, adquirem provas por meio de tortura, curtem um justiçamento. Tanto que achou que sua sagacidade de Batman das Araucárias não seria descoberta: pediu as contas no MPF antes de se tornar acusado formalmente em pelo menos um dos 15 procedimentos administrativos em que figurava como investigado. A “Ficha Limpa” afirma que funcionário público que responde formalmente a um processo administrativo não pode se eleger a cargo público. Um herói tem que burlar a lei para conseguir justiça, né?

    O Tribunal Superior Eleitoral, vilão da história que exige respeito às regras, descobriu a fuleragem da paquita do Sergio Moro. À unanimidade dos votos os Ministros, cuja maioria nenhuma relação tem com o PT e o Lula, decidiram que o “church boy” fez uma gambiarra jurídica para evitar a Lei, pois sabia existirem provas mais do que suficientes para pelo menos responder a um dos vários procedimentos administrativos instaurados. Os eleitores do Delta estão todos tristes com o fato de que seu candidato tão imaculado quanto à Virgem Maria corrompeu o próprio sistema para conseguir justiça e acabar com a corrupção. Esquecem que para o direito os meios também são fins e, portanto, devem ser seguidos à risca.

    Agora vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos: Sergio Moro e Conja também serão julgados por suas maracutaias para se elegerem. A Lava Jato ainda vai demorar para ser expurgada totalmente de nossas instituições, mas seus caciques cairão um a um bem antes disso.

  • A gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão e arte

    Por  Desiree Salgado

    Quarta coluna sobre o mundo e seu contexto.

    Foto da Autora: Desiree Salgado

  • A HISTÓRIA DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA

    Republicado em parceria com: revista Avión Negro – revista de cultura politica Latino Americano

    Primeira entrevista com Mario Oporto: Patria Grande, modelos de integração regional e processos sincrónicos na América Latina

    La historia de la integración latinoamericana
    Por: Cristina Angelini

    No título do seu livro* sobre o pensamento argentino sobre a América Latina, menciona Moreno e Perón, mas que outras figuras políticas e intelectuais colocaria num lugar de relevo durante o período que vai desde a independência até meados do século XX?
    Antes de mais, seria muito interessante assinalar que a ideia da Pátria Grande, da unidade continental, da integração regional, não é uma moda, nem representa ideias do momento, mas faz parte de uma longa tradição argentina. Trata-se de um pensamento profundo deste lado do continente, uma grande contribuição que podemos dar.
    Se pensarmos naquelas referências políticas e intelectuais que podemos destacar no período que vai desde a independência até meados do século XX, eu apontaria, antes de mais nada, para aquelas arengas do processo de emancipação. Porque não nos referimos apenas a pensadores ou escritores, mas também aqueles que construíram a ideia da integração latino-americana na prática política. A Proclamação Tiahuanaco de Juan José Castelli, toda a ideologia Artiguista, os projetos de unidade expressos no Congresso de Tucumán por Manuel Belgrano, as proclamações de José de San Martín ou o Manifesto de Martín Miguel de Güemes fazem parte de uma enorme tradição que eu gostaria de destacar.
    Creio que o “Ensaio sobre a necessidade de uma federação geral entre os Estados hispano-americanos e o plano para a sua organização”, escrito por Bernardo de Monteagudo em 1824, escrito para o Congresso do Panamá, que Bolívar visionou como um congresso de unidade continental, é um dos destaques. Se eu tivesse de apontar um pioneiro intelectual no que seria um desenvolvimento orgânico da ideia de unidade latino-americana, pensaria em Bernardo de Monteagudo. Outro marco foi o diploma chileno Memoria sobre a conveniência e objeto de um Congresso General Americano, de Juan Bautista Alberdi, de 1844, que, juntamente com o de Monteagudo, me parece ser outro dos grandes trabalhos sistemáticos sobre a ideia de unidade. Também os harangues de Felipe Varela durante o conflito da chamada “Guerra da Tripla Aliança contra o Paraguai”, em defesa do Paraguai, os seus manifestos estão cheios de americanismo.
    Destacaria, naturalmente, Manuel Ugarte, porque tem uma obra volumosa e uma visita permanente a todo o continente americano. Poderíamos destacar dessa obra El Porvenir de América Latina de 1910 e La Reconstrucción de Hispano América, outros dos seus grandes escritos. Gostaria de destacar Manuel Ugarte, mas também o americanismo neutralista de Hipólito Yrigoyen. A Reforma Universitária em Córdoba, aquele manifesto de a Juventude Argentina de Córdoba aos homens livres da América do Sul (La Juventud Argentina de Córdoba a los hombres libres de Sudamérica) de 18 de Julho é também outro documento a destacar.

    José Ingenieros e Alfredo Palacios foram também figuras relevantes no pensamento americano e, claro, FORJA (Fuerza de Orientación Radical de la Joven Argentina) onde Arturo Jauretche, Raul Scalabrini Ortiz se destacam, e onde há um imenso pensamento da Pátria Grande. Não se pode compreender o pensamento nacional se não se acreditar que a nação é muito mais do que os países que nasceram na fragmentação da América após a independência. Entre os escritores desse período, creio que a obra de Jorge Abelardo Ramos é muito significativa e que a sua Historia de la Nación Latinoamericana é notável. Além disso, Juan Domingo Perón é, sem dúvida, digno de menção. O “Discurso proferido a 11 de Novembro de 1953 no Colégio Nacional de Guerra”, penso eu, é um documento chave para compreender que o pensamento que se reduziu a esta extraordinária ideia de que o ano 2000 nos encontraria ou unidos ou dominados.

    Diferencia-se entre pan-americanismo e latino-americanismo como dois paradigmas diferentes de integração. A doutrina de Wilson, a doutrina do quintal, e o funcionamento da OEA seriam exemplos deste primeiro paradigma. Quais seriam os exemplos, tanto no passado como no presente, do paradigma da integração latino-americana?
    Sempre houve uma tensão e um dilema sobre como construir a unidade do continente. Esta unidade foi chamada por vários nomes: Hispanoamérica, Iberoamérica, Indoamérica, Panamerica, ou a ideia do Panamericanismo que incluía os Estados Unidos. É uma questão chave para resolver se a unidade do continente inclui o império que contém este continente ou se é o que acreditamos, a unidade daqueles povos herdeiros da coroa espanhola, da coroa portuguesa e também herdeiros de outras metrópoles estrangeiras que foram subordinadas, que fazem parte da periferia latino-americana, e que geram uma unidade original.
    Esta unidade, que foi finalmente chamada América Latina, teve muitos exemplos de organização regional. Poderíamos destacar algumas delas, como o Mercado Comum do Sul, Mercosul, constituído em 1991 pelo Tratado de Assunção e originalmente constituído pela Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, com a adesão de outros membros com plenos direitos. A tentativa da Venezuela de aderir, a Cimeira de Brasília, e a assinatura do protocolo de adesão pela Bolívia. Este é um espaço que reúne 75% do Produto Interno Bruto da América do Sul. A Comunidade Andina foi outra expressão da busca da unidade, composta pela Bolívia, Colômbia, Equador e Peru. É talvez o processo de integração mais antigo da região, uma vez que as suas experiências tiveram início em 1969, quando vários acordos de comércio livre estiveram verdadeiramente na vanguarda da integração.

    Houve outras tentativas importantes como a Comunidade das Caraíbas composta por quinze países, quase todos eles colónias inglesas e muitas de língua inglesa, onde vêem nesta ideia das Caraíbas, de comunidade, aquele sonho que Francisco Morazán teve no século XIX de unir a América Central. Isto é também algo que devemos destacar.
    Depois, como grande órgão político, a União das Nações Sul-Americanas (UNASUR), nascida na Cimeira das Ilhas Margarita, na Venezuela, em 2007, como herança da Comunidade Sul-Americana de Nações, formada por doze países sul-americanos, é uma organização de concentração política com um total de 400 milhões de habitantes e uma área de mais de dezassete milhões de quilómetros quadrados. Se regressarmos à América Central, podemos pensar no Sistema de Integração Centro-Americana denominado SICA, estabelecido em 1991 em Tegucigalpa na Cimeira dos Presidentes da América Central. Um esforço imenso para integrar a região.
    A ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da nossa América) foi outra tentativa de significado político, uma iniciativa promovida pela Venezuela para integrar os países da América Latina e das Caraíbas, baseada na solidariedade e na ideia de complementaridade das economias nacionais, proposta pelo Presidente Hugo Chaves, como alternativa à “Área de Livre Comércio das Américas” (ALCA) promovida pelos Estados Unidos; creio que esta foi outra experiência muito interessante na procura da integração.
    A Comunidade dos Estados da América Latina e Caraíbas (CELAC) é outra das grandes tentativas, esforços e espaços de integração que procuram a coordenação política, a cooperação e a integração destes Estados. A CELAC, que foi criada em Dezembro de 2011 na Cimeira dos Estados da América Latina e Caraíbas realizada em Caracas, é outra das grandes instituições que nos faz pensar hoje numa possível unidade. Portanto, perante políticas como a OEA ou a ALCA, ou a Aliança para o Progresso, a busca da supremacia hegemónica dos Estados Unidos sobre a região e o continente, a América Latina e as Caraíbas sempre procuraram caminhos alternativos e independentes, para se considerarem como uma nova alternativa e procurarem diferentes ferramentas e diferentes mecanismos para as suas realidades, como as Caraíbas, o mundo andino, a Bacia do Prata, a Bacia Amazónica e as suas diferentes unidades.

    Na história da Nossa América há processos sincrónicos como, por exemplo, o primeiro impulso à independência, a ordem conservadora no final do século XIX, o primeiro processo de expansão democrática no início do século XX, os nacionalismos populares no pós-guerra, etc. Quais são, na sua opinião, as razões profundas deste sincronismo e quais são as suas consequências?
    A história da Nossa América é, sem dúvida, caracterizada por processos sincrónicos simplesmente porque partem de uma base de unidade. Saliento três problemas que percorrem toda a história do nosso continente e que devem ser considerados como um todo. Um é o problema da desigualdade, que é uma questão de herança colonial, estrutural para a América Latina, aquilo a que poderíamos chamar a questão social. O outro é a questão nacional, a questão de romper com o colonialismo e ser capaz de construir alternativas independentes e autónomas, com as suas próprias decisões nacionais. Isto está ligado à questão da unidade, porque a herança colonial nos deu desigualdade, fragmentação e colonialidade. Portanto, para resolver os problemas das desigualdades estruturais na América Latina, ao longo do tempo e com características históricas diferentes, procurou-se a emancipação, e esta emancipação está directamente ligada à construção de uma sociedade mais justa. Se a sociedade perde tudo o que produz para os estrangeiros e não se emancipa a si própria, é muito difícil construir sociedades igualitárias. O grande dilema que sempre surgiu na América Latina foi se isto poderia ser feito sozinho em cada país, em que o continente se tornou fragmentado, balcanizado, ou se a opção era a unidade. Portanto, repito, há um triângulo entre a unidade, a questão social e a questão da emancipação nacional que marcharam juntos e marcharam juntos na independência, porque os exércitos lutaram juntos desde o início. O primeiro governante patriótico do Rio da Prata, que agora se chama Argentina, foi um boliviano de Potosí, Cornelio Saavedra. Por sua vez, um natural de Corrientes, José de San Martín, nascido no actual território do que agora chamamos Argentina, precedeu o Peru, e um venezuelano dos exércitos bolivianos, Sucre, governou a Bolívia. Assim, os exércitos lutavam juntos e os homens nascidos em todos os cantos da América do Sul misturaram-se ali e era um exército de sul-americanos que ia derrotar definitivamente os espanhóis em Ayacucho.
    Dentro de dois anos, no dia 24, recordaremos o bicentenário dessa batalha que deu à América a sua independência definitiva. Nesta busca de unidade, o sincronismo é também uma contrapartida, porque existe um projecto fragmentário do que eram os Estados oligárquicos governados pelos proprietários das minas, da agricultura e da pecuária no final do século XIX. Mas houve também momentos sincronizados na luta pela democratização desta sociedade, os projectos a que chamaríamos reformista democrático, como o radicalismo argentino e chileno, ou a APRA peruana (Alianza Popular Revolucionaria Americana), ou o Batllismo uruguaio, ou as lutas anti-imperialistas como a de Sandino na Nicarágua ou a de Farabundo Martí em El Salvador, ou todos os processos que tentaram ir além da igualdade política e civil para procurar a igualdade social, da qual a revolução mexicana no início do século foi o paradigma. Há também uma longa história e uma longa luta pela terra e pela emancipação do povo indígena, pela revolução agrária que poderia ir de Artigas à revolução mexicana no século XIX e início do século XX. Isto será reproduzido novamente com os nacionalismos populares do pós-guerra, porque a experiência do peronismo na Argentina, como a do Varguismo no Brasil ou a de Cárdenas numa nova etapa da revolução mexicana, o demonstrará.
    As profundas razões para este sincronismo são que existe um modelo oligárquico a que se opõe um governo popular. Como os projectos oligárquicos agiram em paralelo e ligados a restrições de representação política e inserção num mercado internacional que deu a este continente o lugar de produtor de algumas matérias-primas, houve sempre uma oposição que propunha a unidade à fragmentação, à desigualdade propôs sociedades com justiça social, à colonialidade propôs autonomia, emancipação e independência, ao modelo de monoprodução agromineral que propôs indústria, e aos projectos de repúblicas oligárquicas opôs-se à democracia, pelo que este sincronismo era inevitável.

    Republicado em parceria com: revista Avión Negro – revista de cultura politica Latino Americano

     

  • Certas luas, dias incertos e lá vem abril

    Por  Desiree Salgado

    Segunda coluna sobre o mundo e seu contexto.

     

    Foto da Autora: Desiree Salgado

  • O MARX É POP

    Willian Carneiro Bianeck

    Aniversário de falecimento parece uma comemoração mórbida, mas não é incomum. Santos ganham festividades em suas mortes, ícones históricos viram feriados e filósofos são apenas lembrados por seus leitores que afirmam entenderem suas obras e para aficionados em citações duvidosas de internet. E tem pessoas como Marx, lembradas por detratores e entusiastas nas efemérides de sua despedida do mundo materialista que tanto lhe causou interesse.

    Não entendo muito bem sobre morte, porque é um assunto que evito. A ficção em seus mais variados gêneros adore especular razões concretas e etéreas que nos levam a partir deste para um outro plano ou apenas virarmos comida aos vermes que primeiro roerem as nossas frias carnes, para dar uma de pedante e botar uma referência machadiana por aqui. Afinal, textos sobre finais são todos parecidos e seguem o roteiro já esperado pelo leitor. Grandes histórias exigem finais poderosos, o que não foi o caso de Karl Marx, que foi acometido por doença e morreu na penúria, sem ter tido êxito quando vivo no seu intento de mudar o mundo. Seu projeto, contudo, não seria esquecido e solapado por sete palmos de terra.

    A biografia do barbudo comunista confunde-se com sua própria obra. Não era conhecido muito por seu apreço aos grilhões acadêmicos, pois acreditava que a filosofia não poderia ficar restrita aos empoeirados gabinetes e bibliotecas universitários. Daí porque vivia em piquetes com seu fiel escudeiro Engels, lançando o seu “Manifesto do Partido Comunista” para tentar empoderar a classe proletária e demonstrar que outro sistema além do capitalismo é possível. A sua última tese sobre Feuerbach resume o mantra que carregou em suas trajetórias: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

    Das releituras leninistas e gramscianas, ao estruturalismo marxista de Althusser, as ideias marxistas continuam em voga, persistindo como uma pedra no sapato para o sistema capitalista. É muito difícil se encontrar qualquer análise séria sociológica sem levar em conta a importância dos ensinamentos da obra colossal “O Capital”  e seus volumes; ainda que incompleta, o estrago que os estudos e escritos trouxeram sobreviveram até mesmo à ampla propaganda desprestigiosa dos principais meios de comunicação, empresários e até mesmo de intelectuais que não simpatizam com suas ideias.

    “Um espectro assombra a Europa… O espectro do comunismo”: essa frase é vista como um mote para disseminar o medo de um mundo em que o capitalismo não se sustenta mais; na verdade, é uma mensagem para nos avisar que um outro mundo é possível e necessário, um mundo em que bilionários e suas sandices sejam apenas caricaturas históricas e a fome e a miséria partes de narrativas de terror que não estarão mais nas estatísticas contemporâneas.

    Karl Marx hoje continua pop. Suas representações não se limitam a artigos acadêmicos ou livros enormes lidos somente por seus autores; passeiam na literatura, cinema e artes gerais. Há inclusive um passeio turístico em Londres chamado “Karl Marx The Walking Tour” que leva o turista de classe média às localidades preferidas do filósofo. Isso sem falar na sua própria imagem transformada em cédula de dinheiro na sua cidade natal, Trier, de zero euros: não valia nada de fato, mas era vendida à época por 3 euros. O fetiche pela mercadoria que se tornou a sua própria imagem.

    Toda essa ladainha tem como conclusão o seguinte: Marx pode ter morrido no mundo materialista que tanto destrinchou, mas continua vivíssimo por meio das ideias e projetos que construiu e criticou. A morte do filósofo alemão não faz sentido, não para quem ainda segue seus preceitos. A data de hoje se presta mais para reavivar a sua atualidade e popularidade, para o bem ou mal. Para a parcela mais tacanha, Karl Marx representa tudo aquilo que não presta e deve ser combatido. Para os demais, é alguém que deve cada ver mais levado a sério, concordando ou não. Para Oswald de Andrade, era motivo para beber: ““ignorando o Manifesto Comunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio”. Para mim, trata-se de meu norte para seguir no meio de um mundo recheado de contrastes e gente bruta que ainda crê na barbárie como algo natural.

    Willian Carneiro Bianeck é boêmio por opção, advogado por obrigação, péssimo literato em disfunção e sociólogo em eterna formação.